Apresentação dos técnicos homenageados pelo NegroMuro

Fala da pesquisadora Renata Reis no evento ‘Homenagem da EPSJV aos trabalhadores técnicos da Fiocruz’

Bom dia, queridas e queridos colegas da Fiocruz, estudantes e todas as pessoas presentes nesse dia tão feliz pra nossa Escola.

Quero começar minha fala com um aforismo que diz assim: 

“Quem não é visto, não é lembrado”

Hoje estamos aqui para celebrar, exaltar, reverenciar e referenciar, personagens da história da Fiocruz que foram fundamentais para nossa Instituição, para construção da ciência e da saúde pública no Brasil: os auxiliares de laboratório, que hoje seriam os atuais técnicos da nossa Instituição. 

Através desses murais, a gente espera contribuir para a preservação da memória do trabalho e dos nossos trabalhadores técnicos, ampliar a representatividade negra nos Lugares de memória do Campus, conectando com a história de Joaquim Venâncio e de outros técnicos negros através da arte e estabelecer um lugar de materialidade para que a memória desses trabalhadores possa ser apreendida por toda a comunidade da Fiocruz. 

São personagens que, até então, eram praticamente desconhecidos, mas que agora todo mundo vai saber que eles existiram. Aqui nesse campus eles trabalharam, moraram, constituíram suas famílias, suas vidas, criaram seus filhos. São trabalhadores da ciência que tiveram uma atuação imprescindível nos laboratórios, nas expedições científicas, na identificação de espécimes da flora e da fauna brasileiras, na descoberta de várias doenças e seus agentes etiológicos, que desbravaram o interior do país, lá no início do século XX. 

O conjunto de murais apresentam ao todo, dez auxiliares de laboratório que ingressaram na Fiocruz em suas 30 primeiras décadas de existência, de 1900 a 1930, e que foram retratados de forma muito bonita, afetuosa e sensível, pelo Projeto NegroMuro, Fernando Cazé e Pedro Rajão, com o auxílio luxuoso dos artistas assistentes Cesar Mendes e João Bela. Eu já admirava e acompanhava o trabalho deles a algum tempo e ficava pensando que a gente podia ter aqui na escola um mural do Joaquim Venâncio pintado por eles. E a Escola não só abraçou essa ideia com muito carinho, mas ainda propôs que eles pintassem um segundo muro retratando outros técnicos negros além do nosso patrono. 

Enquanto acontecia o processo da pintura, os estudantes do Curso de Ensino Médio da Escola puderam participar de atividades pedagógicas que foram pensadas para integrá-los a esse projeto de Memória Institucional, possibilitando conhecer um pouco mais sobre o trabalho que o Joaquim Venâncio fazia no laboratório, aprendendo a tocar e cantar uma de suas músicas preferidas e a compreender a importância da relação entre arte e política presente no trabalho do Projeto NegroMuro.  

O resultado é esse que estamos vendo aqui: esses dois monumentos que apresentam outras histórias de personagens fundamentais para a nossa Instituição. Foi um mês de maio intenso, de muito trabalho, mas também de muita emoção e alegria. 

E agora chegou a hora de contar um pouquinho das histórias deles pra vocês: 

O JOAQUIM VENÂNCIO, nosso patrono, a gente já conhece um pouco mais: ele nasceu em 23 de maio de 1895, na Fazenda Bela Vista, que fica onde hoje é o município de Rio Novo, em Minas Gerais, perto de Juiz de Fora. A fazenda que ele nasceu pertencia à família de Carlos Chagas, médico e cientista do antigo Instituto Oswaldo Cruz. Ele chegou em Manguinhos em 1916, quando estava com 21 anos. As fontes orais utilizadas na pesquisa, contam pra gente, de forma unânime, que Joaquim Venâncio era demais inteligente, que sabia muito de bichos e de plantas, saberes que já trazia consigo por ter sido uma pessoa que cresceu perto da mata. Aqui na Fiocruz trabalhou em diversos estudos e em muitas expedições científicas, especialmente aquela voltadas para pesquisas nas áreas de botânica e de zoologia, como nessa imagem que aparece no mural, em 1929, em um trabalho de campo na Venezuela, essa que ele segura essa cobra enorme. Era ele quem sabia onde estavam os animais, onde encontrá-los e como capturá-los. Conhecia os bichos pelo som que cada um fazia. Joaquim era, como diz a professora Daniele Cerri, um “técnico cientista”. Aqui na Escola, o Maycon o batizou de “mestre dos sapos”, mas ele era o mestre dos mestres, pois era ele quem ensinava seus conhecimentos para seus colegas e também para os cientistas. Joaquim sempre morou aqui em Manguinhos, em uma casa que existe até hoje, aqui perto do horto Fiocruz. Foi casado com D. Sebastiana Batista de Carvalho Fernandes e tiveram 05 filhos: Celso, Wanderley, Joaquim Renê e Hugo. A foto de família que aparece no mural foi tirada aqui mesmo, no Campus, em frente ao Quinino, por volta de 1936 ou 37. Ali bem no meio deles está também Sebastião Patrocínio, seu sobrinho e afilhado, filho de seu irmão mais velho, José. Além de profissional de laboratório, Joaquim Venâncio também era músico, tocava violão, acordeão e adorava festa em família, sempre com muita música. Também adorava feijão preto, por isso vamos todas e todos comer com ele hoje e fazer festa, como ele gostava.

Já aqui do meu lado esquerdo, nesse muralzão enorme, esse primeiro que aparece, da esquerda pra direita, é o FRANCISCO GOMES, mais conhecido como CHICO TROMBONE: o Chico começou a trabalhar muito cedo, bem menino, com 7 ou 8 anos, levado pra Lassance pelo seu tio Altino, que tá ali pertinho dele, segurando um caldeirão. Lassance é a cidade em minas gerais onde Carlos Chagas descobriu o tripanossoma cruzzi, causador da doença de chagas. E o chico estava lá nessa época. Desde então, trabalhou a vida toda na Fiocruz em pesquisas experimentais sobre esquistossomose, filariose, doença de chagas, na produção de soros e em muitas outras pesquisas do laboratório de fisiologia. Ele morava aqui no campus, dormia no sótão do pavilhão da peste. Assim como Joaquim Venâncio, Chico era músico e tocava trombone em uma orquestra. Astuto como ele só, escondia seu instrumento embaixo dos armários do laboratório, pois os cientistas não admitiam que ele ensaiasse, mesmo à noite, fora do horário de expediente.

Do ladinho ali do Chico está ANTONIO DA ROCHA NOBRE, mais conhecido como LINO: foi auxiliar de laboratório trabalhando em pesquisas nas áreas de helmintologia, entomologia, protozoologia, peixes, repteis, pássaros e mamíferos. Na imagem que compõem o mural, Lino estava participando de uma expedição científica em Salobra, Mato Grosso do Sul, acompanhando uma comitiva chefiada pelo médico Lauro Travassos, em 1942.

Logo em seguida vem o ALTINO

ALTINO RODRIGUES BENFICA: como eu já mencionei, Altino era tio do Chico Trombone. Ele acompanhava o médico Carlos Chagas em todos os trabalhos científicos: nas temporadas em Lassance e no Instituto Oswaldo Cruz. Era responsável por organizar a infraestrutura para que as pesquisas pudessem ser realizadas, cuidava do acampamento na mata, do preparo da comida e da limpeza. Era mateiro, conhecedor das artes e artimanhas da mata. Começou a trabalhar aqui em 1911 e se aposentou em 1935, lotado no antigo Hospital de Doenças Tropicais (atual INI/Fiocruz).

Do lado do Altino, está o JOSÉ BARBOSA DA CUNHA: veio pra cá em 1912. Durante a pandemia de Gripe Espanhola, em 1918, diante da crise de saúde pública, onde muita gente morreu, inclusive os trabalhadores da saúde, recebeu um título de nível superior, de farmacêutico, concedido pelo diretor do Instituto para que pudesse suprir a falta de profissionais. Trabalhou na seção de Bacteriologia e Imunidade participando de pesquisas na área de microbiologia, especialmente sobre tuberculose, auxiliando o médico Cardoso Fontes.

Depois vem Seu ANTONIO MARIA FILHO, o NICO: Seu Antonio ingressou em Manguinhos em 1917 como trabalhador das cocheiras, transferido anos depois para a Seção de Meios de Cultura. Esse serviço atendia a todo o Instituto e produzia grandes quantidades de material para meios de cultura que abasteciam as pesquisas na instituição. A partir de sua experiência, foi designado para auxiliar na produção da Vacina da Manqueira, uma vacina veterinária, cuja comercialização foi responsável por manter a autonomia financeira e o orçamento necessário para o desenvolvimento das pesquisas no antigo IOC por quase duas décadas. Seu Antonio Maria era muito amigo de Joaquim Venâncio. As famílias eram próximas, tanto que uma de suas filhas, Marli, casou-se com o filho caçula de Joaquim, seu Hugo Fernandes, que nos dá a honra de sua presença hoje aqui, mais uma vez. Seu Antonio era o artilheiro do Manguinhos Futebol Clube, clube de futebol fundado pelos auxiliares de laboratório do Instituto que ganhou muitos campeonatos regionais na década de 1920.

Do ladinho do seu Antonio está JOSÉ DE VASCONCELLOS: que começou a trabalhar aqui em 1908 em pesquisas na área de parasitologia e entomologia, participando de muitas expedições científicas. Mas infelizmente, um acontecimento o impediu de continuar viajando: em uma caçada realizada dentro de Manguinhos, Vasconcellos segurou um animal para que o médico Lauro Travassos pudesse dar um tiro certeiro. Travassos errou a pontaria e atingiu o pé de José de Vasconcellos. Seu pé foi dilacerado, mas, mesmo assim, continuou trabalhando e morando no antigo Instituto Oswaldo Cruz, atuando nas pesquisas entomológicas com Adolpho Lutz. Foi colega de laboratório de Joaquim Venâncio e cuidava junto com seu companheiro, da Coleção Botânica de Adolpho Lutz. 

Aí, depois, vem o Seu ELOY INÁCIO ROSAS: Seu Eloy, participou em 1912 da expedição científica ao rio São Francisco, acompanhando os médicos Astrogildo Machado e Adolpho Lutz, para conhecer a geografia, a zoologia, a botânica, e as condições sanitárias da região, na tentativa de combater as secas periódicas que já assolavam a região nordeste do país.  Seu Eloy era companheiro de trabalho de Seu Antonio Maria e eram cunhados. Atuaram juntos auxiliando o pesquisador Astrogildo Machado na produção da Vacina da Manqueira e em outra importante vacina veterinária produzida e comercializada pelo IOC, contra o carbúnculo hemático. 

Ao lado do Seu Eloy, sentado, está VENÂNCIO BOMFIM, o VENANCINHO:  era sobrinho de Joaquim Venâncio, filho mais velho do primeiro casamento de José Venâncio, irmão de Joaquim. Chegou em Manguinhos em 1935, vindo da mesma fazenda que o tio, a Bela Vista. Trabalhou durante muitos anos com pesquisas na área de bacteriologia e foi chefe do setor de meios de cultura. 

Por fim, o SEBASTIÃO PATROCÍNIO: irmão de Venâncio Bonfim e sobrinho de Joaquim Venâncio, já morava com seu tio aqui em Manguinhos e começou cedo a trabalhar, primeiro nas cocheiras, fazendo sangria de cavalos, depois no processo geral de produção de vacinas, assumindo a chefia do setor de envasamento na década de 1960, responsável também pelos testes de qualidade. Em 1977 foi transferido para o laboratório de patologia do Hospital Psiquiátrico Pedro II, no Engenho de Dentro, aposentando-se em 1980.

Feitas as devidas apresentações, quero dizer que, através desses monumentos, construídos em parceria com NegroMuro, temos a intenção de que esses personagens sejam, daqui por diante, sempre reconhecidos e lembrados como realmente foram: GIGANTES! Foi o saber, o talento, a dedicação e o trabalho dessas pessoas, que nos permitem estar aqui hoje e que dão sentido pra existência da nossa Escola.

Por fim, eu só tenho a agradecer a todo mundo que contribuiu, que colaborou para que esse sonho de ter nossos antigos técnicos retratados através do trabalho do NegroMuro, pudesse se tornar realidade, presenteando a nossa escola com esses murais, tão sensíveis, transformando nossa casa em um monumento aos técnicos negos da Fiocruz. Muito agradecida por tudo!