O que as trabalhadoras e os trabalhadores da Saúde esperam para o SUS em seus municípios nos próximos 4 anos

Este domingo, o Brasil vai às urnas para as eleições municipais. No Sistema Único de Saúde (SUS), o município cumpre papel fundamental, sendo o contexto de principal estruturação dos serviços e ações de saúde. É no âmbito municipal que se desenvolve a Atenção Primária à Saúde (APS), mais conhecida no Brasil como Atenção Básica, realizada principalmente pela Estratégia Saúde da Família (ESF), uma das principais frentes de acesso da população à saúde, organizada de modo territorial e base comunitária, próxima ao local de moradia das pessoas.

Aproveitando a oportunidade das eleições municipais, o Observatório dos Técnicos em Saúde (OTS) fez um giro pelos municípios que foram campo da pesquisa “Desafios do Trabalho na Atenção Primária à Saúde na Perspectiva das(os) Trabalhadoras(s)”, Palmas, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro e Salvador, para ouvir as trabalhadoras e os trabalhadores a respeito de três questões:

  • Como se encontra a saúde pública no seu município, em especial, a Atenção Básica? Quais os principais desafios?
  • Em relação especificamente à sua categoria profissional, quais são as principais reivindicações para a gestão municipal?
  • Se o sindicato que representa a sua categoria fosse escolher três pontos principais para colocar no programa dos candidatos à prefeitura, na parte relativa à saúde, em sua opinião quais deveriam ser?

Atenção básica: semelhança no diagnóstico e propostas de melhoria

O quadro da Atenção Básica, apontado por quem trabalha no segmento, apresenta semelhanças, que parecem independer do local e da orientação política da gestão municipal. As demandas são muitas.

Vice-presidente do Sindicato dos Agentes Comunitários de Saúde (Sindacs-RJ), Wagner Souza descreve que, ao fim da gestão municipal 2020-2024, a Atenção Básica no município do Rio de Janeiro ainda “está se reestruturando depois do desmonte da gestão passada”, e que o principal desafio para a saúde pública carioca “é expandir a Estratégia Saúde da Família, de forma que consiga atender à população cada vez melhor”.

Para Souza, as condições de trabalho para quem atua na APS necessitam melhorar. “Precisamos diminuir a sobrecarga de trabalho, o que gera qualidade de vida para nós e também para a população que é atendida. Temos muitos ACS [agentes comunitários de saúde] responsáveis por mais de 750 habitantes, o que dificulta o acompanhamento dessas famílias. Outro desafio é a rotatividade do profissional médico, que é muito grande”, ressalta.

A percepção de que quem cuida também precisa receber cuidados, no sentido de que as e os profissionais da saúde precisam ter sua rotina de trabalho transformada para melhor, também está presente no relato do presidente do Sindicato dos Servidores Públicos Municipais de Palmas (Sisemp), o biólogo Heguel Albuquerque. Para ele, a humanização do serviço é o principal desafio para a Atenção Básica. “Não existe um programa efetivo de Saúde do Trabalhador. Assim, o trabalhador fica vulnerável ao adoecimento, e isso pode prejudicar o serviço ofertado no SUS”, alerta.

Agente Comunitária de Saúde (ACS) na capital do Tocantins, Edineuza Brandão reforça que “a Humanização se faz necessária em todos os âmbitos do SUS”. “Lidamos com a desinformação da população e a cultura do atendimento ambulatorial. A organização dos serviços desafia a capacidade da Atenção Básica de perceber a singularidade e as necessidades de cada pessoa. Mesmo que Palmas tenha recebido melhorias na Atenção Básica, incluindo a realização de um concurso em 2024, continuaremos tendo que qualificar estes profissionais. Outro desafio é a informatização dos serviços com equipamentos novos, com tecnologias de ponta, que esbarra no subfinanciamento do SUS”, ressalta.

Técnica de Enfermagem no município e presidenta do Conselho Local de Saúde, Antonia Regia avalia que a Atenção Básica em Palmas não atende aos anseios e necessidades da população. “Não se trabalha a parte preventiva na ESF e nas unidades básicas. Trabalha-se em regime de UPA: o usuário chegou, foi atendido, mas não há mais aquela parte de acompanhamento de idosos, das crianças, todo aquele trabalho de prevenção foi perdido ao longo do tempo”, afirma.

Carlos Eduardo Melo, médico de família e presidente da Associação Pernambucana de Medicina de Família e Comunidade, avalia que Recife passa por uma expansão da Rede de Atenção Básica. Para ele, o grande desafio “não só para Recife, mas para todas as cidades” é tratar a Atenção Primária como a principal porta de entrada do sistema. “Os gestores devem ter capacidade de expandir e qualificar essa porta de entrada, porque o benefício para a população é muito claro, porque a APS trabalha a aproximação do sistema com seus pacientes e usuários, melhora a qualidade dessa atenção e é a referência para coordenar o cuidado dessas pessoas. Se você qualificar e expandir essa porta de entrada, vai ter mais pessoas acessando o sistema com menos pontos de conflito”, indica.

Agente Comunitária de Saúde há duas décadas no mesmo posto de saúde em Porto Alegre, Claudia Canatta relata um quadro de mudanças que vivenciou nos últimos 20 anos. Suas palavras revelam as condições difíceis em que atuam as trabalhadoras e os trabalhadores da APS, recentemente tão desafiadas e desafiados no enfrentamento dos problemas sociais e de saúde decorrentes da crise climática na capital gaúcha.

“Em Porto Alegre, a gestão optou por transferir o cuidado da população para ‘parceiras’, empresas terceirizadas, privadas, quando essa responsabilidade deveria ficar com o município. Isso acabou trazendo muito transtorno. Nós acabamos com o vínculo da população com os postos de saúde na Atenção Básica, quando a prioridade deveria ser criar o vínculo com a população. Nestas empresas, que hoje são responsáveis por quase 90% da Atenção Básica no município, há rotatividade de trabalhadores”, cita.

Para Canatta, o principal desafio é justamente o município assumir seu papel. “A primeira coisa a se fazer é a saúde de Porto Alegre retornar para a responsabilidade do gestor do município de Porto Alegre. A prefeitura cuidar da saúde da sua população. Isso tem que retornar”, defende.

Coordenador Jurídico do Sindicato dos Servidores da Prefeitura de Salvador (Sindseps), o agente de saúde Jovenildo Pereira relata as queixas dos usuários do SUS na capital baiana. “Isso ocorre por conta da falta de insumos e de profissionais para dar uma melhor assistência. O município está passando por um concurso público, que não suprirá as vagas. Fica uma lacuna muito grande [para a população]. Chegam nas farmácias do município, não há medicamentos... A população se revolta. A lacuna é grande e precisa ser preenchida com muita urgência, porque a população mais carente é quem paga o preço”, aponta.

Reivindicações também são iguais nos diferentes territórios

As demandas apresentadas pelos trabalhadores também guardam semelhanças, incluindo aquelas que não são exclusivamente corporativas e cuja implementação contribuiria para a melhoria dos indicadores de saúde dos municípios, como a adequação da relação entre o número de habitantes cobertos pelo trabalho das e dos ACSs .

“A adequação da relação ACS/número de habitantes, com a efetivação de novos Agentes Comunitários, é uma demanda de nossa categoria no Rio de Janeiro. Além disso, precisamos ter políticas efetivas de combate aos assédios, e melhores condições de trabalho. Estes fatores, é preciso dizer, estão adoecendo o Agente Comunitário de Saúde”, cita Souza, do Sindacs-RJ.

“A valorização dos ACS é uma pauta presente e atual, especialmente o reconhecimento sobre a importância de nosso trabalho. A capacidade intelectual do agente algumas vezes deixa de ser vista, reconhecida e valorizada. Isso está mudando, mas é fato que às vezes a contribuição desses profissionais em pesquisas e outras produções é meio que invisibilizada. E a depender do profissional coordenador, os agentes flutuam entre diversas atribuições, gerando acúmulo de funções”, complementa Edineuza Brandão. No caso específico de Palmas (TO), ela ainda cita “o impasse com a atual gestão a respeito do piso salarial dos ACS, ACE e AVA”, que não é respeitado pelo município.

Por sua vez, Antonia Regia defende a contratação de pessoas através de concursos públicos, e reitera a demanda pela redução da quantidade desproporcional de pessoas atendidas por equipe de Saúde da Família.

Para Porto Alegre, Claudia Canatta defende como principal reivindicação que a gestão municipal “retorne a atender as necessidades da população e não as da iniciativa privada, ou as necessidades do gestor e suas convicções”. Além disso, a ACS relata haver uma deficiência de profissionais, sendo necessária a recomposição do quadro funcional. “Há concursos findando e as pessoas não foram chamadas. Então, nós temos profissionais para trabalhar. Basta que eles sejam convocados. São pessoas que se esforçaram, fizeram um concurso e estão aguardando, mas não são chamadas. O chamamento dos concursados é uma prioridade. Nós precisamos desses profissionais”, defende.

Jovenildo Pereira cobra, da gestão municipal de Salvador, o cumprimento da lei. “Para minha categoria, englobando agentes comunitários de saúde e agentes de combate às endemias, o maior desafio é o cumprimento das leis. A Prefeitura se recusa a cumprir a Emenda Constitucional nº 120 e a Lei nº 9646/2022, uma lei municipal que resolveria os problemas dos agentes de saúde. Essas leis obrigam o reajuste do salário do servidor e que se obedeça a tabela da carreira do cargo do agente de saúde”, indica.

Há, por outro lado, as demandas específicas também. Albuquerque, presidente do Sisemp, por exemplo, aponta que “nós biólogos demandamos o reconhecimento de nossos direitos trabalhistas específicos, como previsto nos dispositivos sobre insalubridade e periculosidade; bem como a aposentadoria especial. Além disso, é necessário recebermos tratamento igualitário, como integrantes que somos das equipes multiprofissionais do SUS”.

“É importante para a medicina de família e comunidade ser reconhecida como especialidade dentro do sistema público de saúde. Eu vou além, não só a medicina de família e comunidade, mas os trabalhadores de saúde da família, é preciso que sejam reconhecidos como especialidade dentro da rede de saúde. Isso quer dizer que nós tenhamos as nossas opiniões, e o fruto do nosso trabalho tenha o mesmo peso que o de um ortopedista, um endócrino, um cardiologista”, reforça Melo.

Propostas visam o bem-estar da população e o fortalecimento do SUS

Ao citar as três propostas que faria, o médico pernambucano começa com um exemplo de como as reivindicações das trabalhadoras e dos trabalhadores da Saúde beneficiam as condições gerais de atendimento de toda a população. Surge, novamente, o tema da necessidade de adequação do número de pessoas cobertas por cada equipe.

“A primeira coisa que o sindicato deveria fazer é cobrar a melhoria da proporcionalidade de usuários por equipe de Saúde da Família. Hoje a gente tem em média entre 3 e 4 mil, quando o mundo todo tem no máximo 2 mil pessoas por equipe de saúde da família. Melhorando essa proporcionalidade, nós vamos exercer a atenção primária que é a atenção personalizada. Então não tem como você exercer a atenção personalizada com a grande quantidade de usuários”, cita.

Além disso, Melo defende a qualificação das unidades de saúde, que “precisam ter construções e estrutura que deem conforto ao usuário e ao trabalhador”, e por fim proteger o trabalhador, tanto na parte de saúde mental como de saúde física, “para que a gente possa exercer o nosso trabalho com a segurança de que, se houver necessidades, nós vamos ser cuidados pela gestão”.

Wagner Souza indica como pautas prioritárias a expansão da Saúde da Família, “que precisa ser feita com qualidade”, e também da rede secundária. “Ela precisa oferecer para a população especialidades e exames que a Atenção Básica não tem”, cita.

Heguel Albuquerque indica a necessidade de fortalecimento das vigilâncias. “Seja ela Ambiental, Epidemiológica, do Trabalhador e Saúde Ambiental; é preciso fortalecê-las”. Além disso, acredita ele, a gestão municipal precisa implementar um Controle Legal dos agravos, “criando o Código de Vigilância em Saúde e imputando a devida responsabilidade aos infratores em saúde pública”, defende.

Edineuza Brandão aponta a necessidade de atualização e incorporação do piso salarial dos ACS, ACE e AVA ao PCCS; bem como o apoio para melhoria das condições de trabalho dessas trabalhadoras e trabalhadores, com o fornecimento de equipamentos como tablets; e uma maior divulgação a respeito do trabalho das e dos ACS, em ações de reconhecimento e valorização.

Jovenildo Pereira relata que apenas um candidato a prefeito de Salvador se reuniu com o sindicato para ouvir as demandas. Dentre as demandas de sua categoria, ele indica melhores condições de trabalho, seja para as(os) agentes de endemias, como “acomodações nos locais pontos de apoio, que nós chamamos de PA”; seja das(os) e dos ACS, “cuja maioria não tem uma sala específica para organizar o trabalho”. Além disso, pede que sejam retiradas destas(es) agentes responsabilidades que não lhes cabem. “O agente comunitário deve trabalhar especificamente naquilo que está dentro da lei, porque às vezes eles trabalham como agente de portaria, fazendo outras atividades, e isso prejudica muito seu desempenho”. E reitera a crítica para que a gestão municipal de Salvador cumpra a lei sobre os vencimentos salariais.

Por fim, Claudia Canatta resume as propostas na afirmação de que “a população tenha o que é seu direito, que é o cuidado com a sua saúde. Nós vamos continuar lutando. O SUS é a nossa vida. O SUS é o nosso cuidado. O SUS precisa de nós e nós precisamos do SUS. Então, vamos defender a saúde de Porto Alegre”.

A fala do OTS

A pesquisa Desafios do Trabalho na Atenção Primária à Saúde na Perspectiva das Trabalhadoras e dos Trabalhadores, em diálogo com os pontos comuns entre as falas das trabalhadoras e dos trabalhadores ouvidos, destaca que expandir e qualificar a ESF significa cumprir o necessário dimensionamento entre o número de população para cada equipe de modo que o cuidado integral, longitudinal e de base territorial seja realizado de forma multidisciplinar. Implica também o investimento na desprecarização do trabalho, por meio da adoção de modalidades de contratação estáveis e que garantam os direitos associados ao trabalho digno. Outro aspecto relevante diz respeito à saúde da trabalhadora e do trabalhador, que também precisa ser garantida tanto quanto ao acesso ao cuidado, quanto às medidas protetivas, visando o trabalho seguro.

Consideramos urgente retomar as diretrizes da territorialização, da participação comunitária e a perspectiva da determinação social do processo saúde-doença, retomando a centralidade da Estratégia Saúde da Família. Nesse sentido, chamamos a atenção para a necessidade de se reverter o processo de privatização da gestão da APS, em curso, por exemplo, no Rio de Janeiro e em Porto Alegre, uma vez que os interesses privatistas colidem com essas diretrizes estruturantes da APS integral e universal.

Como frente fundamental de viabilização do direito à saúde, a Atenção Básica, cuja responsabilidade principal repousa nos municípios, precisa ser priorizada nas agendas e nos programas das candidatas e dos candidatos à prefeitura das cidades brasileiras.

 

Jornalista: Paulo Schueler. Imagem: Radilson Carlos Gomes da Silva