
Ao longo da primeira quinzena de junho, uma delegação da Academia Brasileira de Ciências (ABC) liderada por sua presidente, a doutora em Ciências Biológicas Helena Nader, esteve na China a convite da Academia Chinesa de Ciências (CAS). Neste período, os pesquisadores brasilerios visitaram 12 instituições e laboratórios chineses – dentre os quais se destacam os ligados aos segmento de Saúde - em quatro cidades do país asiático. A ação ocorreu no âmbito do Memorando de Entendimento mantido entre as duas academias, ABC e CAS, e visou conhecer em detalhes as infraestruturas chinesas, para explorar oportunidades de cooperação com instituições brasileiras.
Em entrevista ao OTS, Helena Nader comenta a visita, lista os fatores que em sua avaliação explicam o fortalecimento da ciência chinesa e sugere medidas para que o Brasil avance em sua tecnologia e inovação a partir do investimento em Educação, desde "o pequenininho ao adolescente" até "quem já é professor". Confira na íntegra:
OTS - Qual o balanço da viagem?
Helena Nader - A viagem foi muito produtiva. Visitamos instituições que estão sob o arcabouço organizacional da Academia Chinesa de Ciências, que possui tanto membros eleitos, como nós, mas também algo similar ao que ocorre com as academias de ciências do leste europeu e da Rússia: elas congregam não apenas os melhores cientistas, estes acadêmicos, mas também mantêm sob sua custódia universidades e instituições de pesquisa.
Em geral, visitamos instituições mais voltadas às áreas biológica e de saúde, segmentos que queríamos conhecer em detalhes, conferindo como funcionam os laboratórios nacionais. O Brasil possui poucos laboratórios nacionais, e, na minha opinião, não são realmente nacionais – eles estão concentrados em São Paulo e no Rio de Janeiro.
Na China, um país com uma área também expressiva e uma população de um bilhão e meio de habitantes, houve a distribuição dos laboratórios por todo o território chinês, o que me chamou a atenção. Isso gera um impacto positivo no desenvolvimento, seja ele econômico ou social.
O Brasil, por sua vez, fez outra escolha, e não foi por falta de alertas. A minha avó já dizia: você nunca põe todos os ovos na mesma cesta. Quem sabe, agora, possamos trazer esse exemplo para cá. Vamos fazer um relatório para a Finep [Financiadora de Estudos e Projetos] e para o Ministério [de Ciência, Tecnologia e Inovação], identificando o que vimos de positivo lá e propondo adaptações para implementação no Brasil.
Cada vez que eu vou para a China, ela está diferente. A última vez havia sido em outubro de 2023. Atualmente falamos muito sobre transição energética, por exemplo. A China ainda tem um longo caminho a percorrer, mas está melhor que nós. Carros elétricos e híbridos, que usam placa verde, estão espalhados pelas cidades, em todos os lugares. Claro que o país ainda depende muito do carvão, do combustível fóssil, mas você já vê uma mudança.
OTS - Da programação da viagem, chamou atenção a quantidade de instituições ligadas à área da biotecnologia, incluindo suas aplicações na saúde. Que sinergias há com o Brasil nesta área, e o que podemos aprender com a experiência chinesa neste segmento?
Helena Nader - Vejo sinergias totais. Eles querem colaborar com o Brasil, país que na visão chinesa é um parceiro extremamente importante do Sul Global nas Américas. Essa é uma área [biotecnologia] em que eles não eram fortes, mas estão ficando.
Nós visitamos um centro de medicina [Instituto de Medicina de Hangzhou] que vai da bancada ao ensaio clínico. É fora do comum o número de leitos para ensaios clínicos. Eles querem parcerias com o Brasil nas áreas de virologia e imunologia, nas quais somos fortes. A ciência brasileira é muito relevante, a própria Fiocruz tem grandes nomes, de peso internacional, sem contar as nossas universidades.
Possibilidades de colaboração estão abertas, e uma instituição chinesa, que não citarei neste momento, já quer estabelecer um fluxo de pessoal, com a vinda de pesquisadores chineses e a ida de cientistas nossos para lá. Prevejo que teremos um grande impacto em alguns anos.
Hoje o Brasil tem três criomicroscópios. O primeiro foi instalado no Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), em Campinas (SP). O segundo está na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em um laboratório multiusuário nacional; e o terceiro está sendo montado no campus de São Carlos da Universidade de São Paulo (USP). Outra instituição que visitamos [Centro de Pesquisa de Fronteira em Estrutura Biológica de Beijing], sozinha, possuía 16 equipamentos destes.
Outra coisa que nos chamou atenção é como eles estão trabalhando com os dados. Em um dos institutos [Instituto de Microbiologia da Academia Chinesa de Ciências], eles possuem um catálogo de fungos, voltando a séculos atrás. Eles estão informatizando e colocando como base de dados. Estas são iniciativas das quais o Brasil também pode participar.
OTS – E os destaques de outros segmentos?
Helena Nader - Fomos em um laboratório [Instituto de Ciência e Engenharia do Mar Profundo] localizado em uma ilha bem ao sul da China. Embora de construção recente, ele já está entre os mais renomados do mundo em pesquisas oceanográficas de grande profundidade e engenharia.
Visitamos também o acelerador de partículas de tipo síncrotron [Instituto de Física de Altas Energias] que eles estão construindo. Os chineses já são parceiros de nosso Sirius.
Mas são parcerias, na minha visão, ainda muito esporádicas. Ao olharmos os mapas de com quem os chineses colaboram, vimos muito a Europa e os Estados Unidos, mas praticamente nada com a América Latina. É muito triste.
O Itamaraty precisa ter um papel mais relevante nesse aspecto. Aquela época em que se dizia que ‘a China copia’ já se foi. Ela desenvolve, cria. Estão levando jovens de tudo que é canto do mundo, e do redor da própria China. O Brasil ainda continua olhando o “norte global” como o grande colaborador. Precisamos enxergar outras regiões.
Lá todos falam inglês nos laboratórios. Pode não ser o inglês mais perfeito, como também não é o nosso. Mas falam. Aqui no Brasil não é obrigatório. Essa dificuldade precisa ser superada para aumentarmos nossa colaboração na área científica.
Outra coisa que me chama a atenção é o envolvimento do Estado na ciência, no sentido de acreditar, incentivar, de pôr recursos. O investimento da China está aumentando, e começou pela educação.
OTS – Como os diferentes níveis de ensino (Ensino Profissional e Tecnológico, Ensino Superior, Pós-Graduações) colaboram para o atual estágio de desenvolvimento da China em C,T&I?
Helena Nader - O que levou a China ao seu estágio atual foi acreditar que, via educação, iria gerar ciência e criar tecnologia, inovação. Aqui infelizmente ainda não conseguimos convencer o Estado brasileiro, em especial o Congresso Nacional, a adotar essa premissa, pois o Brasil de hoje não é o mesmo de 10 anos atrás. O atual poder do parlamento é muito forte. Ciência e educação, principalmente a ciência, está sob os limites do arcabouço fiscal. Se o Estado não reconhece que a única maneira de sair de uma crise econômico-financeira é criando ciência e inovação, isso já te diz alguma coisa.
Observemos os planos quinquenais do Xi Jinping, em todos a ciência aparece. Sem ciência básica, não há inovação. A China aumentou em 30% os investimentos no setor, e agora os recursos chineses na área são em número muito superior ao nosso.
Vemos sempre o Lula visitando obras e falando sobre ciência. Ele fala mas o Congresso não ouve. O que dispomos de financiamento hoje é exclusivamente o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), que não dá conta das necessidades nacionais.
A China chegou onde chegou porque ela investiu e acreditou, e continua acreditando. Antes eles não possuíam nenhuma universidade no topo dos rankings. Hoje estão com inúmeras. Já ultrapassaram, há alguns anos, o número de publicações dos Estados Unidos, e agora aumenta também o impacto destas publicações. Basta olhar os números dos periódicos de mais alto impacto, como Nature, Science, Cell, Lancet: a China está lá.
OTS - Seria possível para a China estar em seu estágio atual de C,T&I sem que fossem feitos investimentos de longo prazo no Ensino Básico, para crianças e adolescentes?
Helena Nader - Não seria. É o que estamos pedindo no Brasil, e temos que atacar todos os pontos da rota, do pequenininho ao adolescente, o que está na universidade, quem já é professor. Se formos esperar chegar a essa nova geração, já perdemos o barco. Isso me deixa um pouco angustiada. Temos pessoas brilhantes, nossos estudantes são criativos, excelentes, mas o Estado brasileiro – e por Estado eu quero dizer os três poderes, e em todos os níveis, federal, estadual e municipal – não está prestando a devida atenção para a educação e para a ciência.
Educação e ciência é um projeto de longo prazo, não é uma “emenda pix” que vai resolver. Precisa ser um projeto do Estado brasileiro, dos três poderes, nas três instâncias. Foi isso o que a China fez. Você precisa ver o que eles têm de acordos para desenvolver seus municípios, porque não querem que a população migre para as mesmas cidades. Eles viram que precisam gerar empregos de qualidade nas localidades, e para isso é preciso haver instituições. Foi algo planejado, não foi ao acaso. Um processo estratégico que vem já de algumas décadas.
Eu ainda tenho esperança. Eu falo sempre: enquanto eu estiver viva, eu vou continuar acreditando e lutando.
OTS - Há algo da relação entre os locais que vocês visitaram com universidades e empresas chinesas (estatais ou privadas) que possa ser adaptado para a realidade brasileira?
Helena Nader - Tudo. Aqui no Brasil o Estado é diminuído. Lá, eles querem que a iniciativa privada cresça, mas o governo tem sempre pelo menos 51%. Um exemplo: foi instalada lá a fábrica da Zeiss, para produção de microscópios, porque a companhia percebeu que lá ela poderá dar um salto de qualidade neste produto, e que lá também está o mercado [para comercialização de microscópios].
No Brasil, qual é a indústria que de fato desenvolve aqui? Na área de fármacos, por exemplo, as grandes indústrias fazem os seus genéricos, mas algo é desenvolvido no Brasil? Não. O Brasil exige, como contrapartida, que todas essas indústrias façam pesquisa e desenvolvimento (P&D) aqui? Não. Isso é algo que poderíamos copiar.
A China agora desenvolve seus próprios insumos. O Brasil precisa voltar a ter indústrias de química fina e pesada, é preciso investir nisso. Se o Brasil quer ser grande, ele tem que pensar grande. Não vamos conseguir continuar vendendo commodities para sempre, há um limite, elas acabam. E sem ciência esse ciclo não será rompido. Do jeito em que se está cortando a pesquisa, inclusive no agro… É preciso lembrar que quem desenvolveu o agro foi a ciência brasileira. Os chineses têm o maior respeito para com este fato.
OTS - Na viagem, durante o evento de comemoração dos 70 anos da CAS, a delegação da ABC abordou em suas falas os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, a ‘Ciência Aberta’ e ampliação das opções para publicação em revistas científicas locais. Que aspectos da experiência chinesa são bons exemplos nestes três pontos?
Helena Nader - Em relação aos ODS, eles estão lutando. São a favor da ciência aberta, mas como possuem recursos e uma moeda mais forte que o nosso real, têm lastro e publicam muito, pagando pela publicação [para acesso aberto]. Pegam open access mas continuam pagando para publicar na Nature, na Science, como nós.
Debatemos com eles como criar uma plataforma – e pensamos que poderia ser a própria Scielo, que já existe – que reúna jornais e periódicos do Sul Global, porque estamos reféns dos grandes publishers, das grandes editoras. E conversamos sobre como criarmos parâmetros de qualidade. Saímos de lá com ideias para trabalhos conjuntos.
OTS - Na visita ao Centro de Pesquisa de Fronteira em Estrutura Biológica de Beijing (FRCBS), para além das inovações tecnológicas, foi apresentada a ideia de "formação da nova geração de jovens cientistas". O que é preciso para estimular - e posteriormente sustentar - essa curiosidade / criatividade no Brasil?
Helena Nader – Em primeiro lugar o Brasil – e repito que aqui faço referência aos três poderes, nos três níveis – precisa passar a acreditar que educação e ciência valem a pena, porque aí vamos conseguir motivar os jovens. Muitos jovens hoje não querem mais fazer ciência no Brasil. Lá [na China] eles querem.
Aqui hoje há localidades onde se abre concurso público e as pessoas nem se inscrevem, porque para ser docente você precisa fazer quase um voto de pobreza. Faço questão de insistir: é preciso haver valorização e respeito pela educação e pela ciência, o que hoje não existe. O que vemos é o desejo por ser youtuber e influenciador, “o que dá dinheiro”. Se o Brasil voltar a acreditar na educação e na ciência, pode ser que dê certo. Eu quero que o Brasil acredite, e vou continuar gritando para ele acreditar.
Jornalista: Paulo Schueler. Foto: Fernando Frazão / Agência Brasil