Trabalho e educação na saúde

 

Leia o texto abaixo e conheça o desenvolvimento da área de Recursos Humanos em Saúde, no Brasil, desde o início dos anos 1960, e a emergência do campo Trabalho e Educação na Saúde a partir dos anos 2000. Boa leitura.

A área “Trabalho e Educação na Saúde” é herdeira da área de “Recursos Humanos em Saúde”.

Entretanto, é compreendida aqui a partir de outra chave teórica-conceitual, proveniente da economia política. Trabalho aqui não é apenas dispêndio da força de trabalho, mas é o que define a existência humana. Os homens e as mulheres se constituem como tal à medida que necessitam produzir continuamente a vida, adaptando a natureza às suas necessidades, às finalidades humanas.

Isso quer dizer que trabalhando sobre essa natureza e transformando-a, ao mesmo tempo que constitui a realidade humana, o trabalho também define a existência histórica dos homens e mulheres. Esse movimento produz as condições de vida mas também cultura, saúde e tecnologias, entre outros. Os conhecimentos que são necessários para a produção do mundo humano, dos homens e mulheres, vão mudando e se ampliando ao longo do tempo, conforme mudam também os modos de trabalhar.

Da mesma forma, a Educação, especialmente a Educação Profissional em Saúde não é tratada aqui como sinônimo de treinamento ou adestramento com fins instrumentais e pragmáticos, mas visa superar a clássica dicotomia ou dualidade entre trabalho manual e trabalho intelectual, entre instrução profissional e instrução geral, inspirada na concepção politécnica de ensino.

A politecnia postula que o processo de trabalho desenvolva uma unidade indissolúvel entre os aspectos manuais e intelectuais e que os trabalhadores e as trabalhadoras da saúde dominem os fundamentos científicos das diferentes técnicas da produção moderna no ensino médio. Não se trata de formar um trabalhador ou trabalhadora adestrada(o) para executar determinada tarefa requerida pelo mercado de trabalho, mas na perspectiva de um desenvolvimento multilateral em todos os seus aspectos: físico, intelectual, prático, político, ético, estético, combinando estudo e trabalho.

Historicamente, o marco inicial do tratamento político-institucional no campo dos recursos humanos em saúde, no país, é a 3ª Conferência Nacional de Saúde (CNS), no ano de 1963. Sob a influência das teses municipalistas e do movimento sanitarista-desenvolvimentista ainda prevalecia uma visão higienista da saúde pública. Nesta, os recursos humanos eram tratados considerando-se apenas a perspectiva da formação, sendo o médico o protagonista.

A formação dos demais trabalhadores e trabalhadoras da saúde deveria ser mais ou menos complexa de acordo com a realidade local. Mas em termos gerais defendia-se a utilização, em larga escala, de pessoal técnico de baixa qualificação, com pouco nível educacional, capacitados com treinamentos curtos e essencialmente práticos, tanto nos hospitais, como nos serviços comunitários ou de saúde pública; tanto no setor privado, como no público.

Essa orientação não se alterou na 4ª CNS, realizada em 1967, com o tema ‘Recursos Humanos para as atividades de Sauder.’ No contexto da ditadura civil militar que durou 21 anos (1964-1985), no país, e sob a égide da teoria do capital humano os trabalhadores e trabalhadoras da saúde passam a ser tratadas(os) como um fator de produção como qualquer outro e precisavam ser treinados e treinadas de acordo com o modelo taylorista-fordista de organização do trabalho, segundo a divisão social do trabalho.

A ideia-chave é que a um acréscimo de instrução, treinamento e educação corresponde um acréscimo de capacidade de produção. Daí que o investimento em capital humano passa a significar um elemento determinante para o aumento da produtividade e de superação do atraso econômico, por um lado, e passa a explicar as diferenças individuais de produtividade e renda, consequentemente de mobilidade social, por outro lado. A educação e a saúde passam a ser enfocadas pelo prisma do fator econômico e não da estrutura econômico-social. Essa teoria foi o fundamento para a profissionalização compulsória do antigo ensino de segundo grau, a partir da Lei 5.692/1971, revogada nos anos 1980.

Nesse cenário inicia-se o processo de institucionalização da área de Recursos Humanos em Saúde (RHS), nos anos 1970. Principalmente após a criação do Programa de Preparação Estratégica de Pessoal de Saúde (PPREPS), em 1975, que marca o início do planejamento governamental nas áreas de trabalho e educação na saúde. 

Na década de 1980, são criados também dois programas destinados a atender as necessidades de formação dos trabalhadores e das trabalhadoras da saúde e a extensão da cobertura no país: o “Projeto de Formação Profissional em Larga Escala”, com o objetivo de profissionalizar trabalhadores e trabalhadoras de nível médio e elementar, que atuavam nos serviços públicos de saúde; e “Capacitação em Desenvolvimento de Recursos Humanos em Saúde (Cadrhu)”, voltado para a formação de dirigentes e técnicos das áreas de recursos humanos e administração de pessoal do sistema de saúde. Nesse movimento incluiu-se também a criação dos órgãos de desenvolvimento de recursos humanos, junto às secretarias estaduais de Saúde nos estados brasileiros.

Esse período é marcado pelo esforço de formação do grande contingente de trabalhadores e trabalhadoras técnicas de saúde, principalmente na área de Enfermagem, que trabalhavam nos serviços de saúde sem qualificação específica, protagonizado pelo “Larga Escala” sob a liderança de Izabel dos Santos, junto às secretarias estaduais de saúde. Uma das ideias-chave era reconhecer e legitimar o processo de profissionalização técnica para que, no plano social, estes trabalhadores e trabalhadoras saíssem da histórica invisibilidade a que foram submetidos e submetidas, ganhassem identidade de categoria profissional e a possibilidade de organização em entidades de classe. Nesse mesmo período é criada a Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, na Fundação Oswaldo Cruz, em 1985.

Mas, é a partir das recomendações da 8ª CNS, em 1986, capitaneada pelo movimento da Reforma Sanitária, que o campo de RHS ganha em definição e se institucionaliza, principalmente após a Conferência Nacional de Recursos Humanos para a Saúde (CNRHS), realizada nesse mesmo ano. Além da importância da formação de trabalhadores para o Sistema Único de Saúde (SUS) aprovado pela Constituição Federal em 1988, a partir desse momento incorporam-se na agenda os temas relativos ao trabalho na saúde.

 

Nos anos 1990 as políticas de RHS foram marcadas por grande instabilidade decorrente da falta de consenso entre os atores envolvidos na implantação do SUS. Sem falar das mudanças que se operaram no estado brasileiro sob o predomínio das políticas neoliberais e do novo modelo gerencial, principalmente após o governo Fernando Henrique Cardoso (1995/2003).

Agrega-se a isso a histórica falta de priorização das questões relativas à área, tais como a baixa qualificação profissional e baixa remuneração dos trabalhadores técnicos em saúde e as consequências do processo de municipalização dos serviços de saúde. Neste período, as condições de trabalho precárias se exacerbaram, houve grande rotatividade e relações de trabalho diferenciadas no que se refere a salários, carga horária e grau de autonomia no trabalho. Acompanhadas, é claro, pelos conflitos inerentes a esse elenco de problemas, comprometendo assim a qualidade e resolutividade do SUS.

Essa agenda marca definitivamente a importância da relação trabalho e educação na saúde para a efetivação do SUS.

Os anos 2000 inauguram-se sob novas perspectivas e esperanças com a eleição do governo Lula (2003), especialmente no que se refere à construção de um novo modelo de gestão do trabalho no SUS e da educação dos trabalhadores da saúde. Esse novo cenário também refletiu na reestruturação do Ministério da Saúde (MS) com a criação da Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde (SGTES), em 2003. Seu objetivo era enfrentar a fragmentação das ações e fortalecer o SUS, mediante a elevação do nível de controle social sobre o sistema. 

Essa reestruturação também ressignificou a noção de trabalhador e trabalhadora da saúde que passam a ser sujeitos no processo de trabalho em saúde.Consequentemente, agentes de transformação do trabalho em saúde e não mero recurso humano que, na lógica administrativa ou gerencial tradicional, é um cumpridor ou cumpridora de tarefas previamente estabelecidas pelo gestor local.

Faz parte desse esforço a criação da Política Nacional de Educação Permanente em Saúde (Pneps),em 2004, uma estratégia que visava ampliar as concepções de trabalho e educação para transformar as práticas de formação, atenção, gestão, formulação de políticas e controle social do SUS. Estavam sendo construídas as bases para a estruturação de uma Política Nacional de Recursos Humanos em Saúde (PNRHS) capaz de contribuir para o desenvolvimento da Política Nacional de Saúde.

De todo modo, se por um lado essa reestruturação dá maior visibilidade à gestão do trabalho e educação na saúde, por outro é atravessada por um contexto paradoxal, no qual se convive com a precarização e flexibilização do trabalho e ao mesmo tempo com as expectativas de um ‘novo’ tipo de trabalhador e trabalhadora participativa, autônoma e criativa. 

Em outras palavras, a criação da SGTES conseguiu inserir o trabalho e a educação na agenda de formulação das políticas públicas de saúde, porém sem conseguir superar a precarização e a terceirização do conjunto de  trabalhadores e trabalhadoras técnicas da saúde. Medidas como a reinstalação da Mesa de Negociação Permanente no SUS, em 2003, a criação do Comitê Nacional Interinstitucional de Desprecarização do Trabalho no SUS e do Programa Nacional de Desprecarização do Trabalho no SUS (DesprecarizaSUS), em 2006, buscaram concentrar esforços nesse sentido, com resultados importantes, mas não suficientes para o equacionamento do problema.

De maneira geral, pode-se dizer que até o final dos governos federais de coalizão, liderados pelo Partido dos Trabalhadores, as principais diretrizes de implantação do SUS nos moldes constitucionais seguiram enfrentando dificuldades para o seu avanço, prejudicadas pela prevalência de políticas sociais compensatórias, fragmentadas, com forte grau de subordinação à lógica econômica e sob influência dos interesses de mercado. Não se implementou uma concepção unificada de seguridade social que integre de forma orgânica a saúde, a assistência social e a previdência social, com a permanente disputa entre o modelo público e universalista da saúde e o modelo privatista.

No campo dos RHS, os ideais da Reforma Sanitária não lograram o êxito almejado, frente às dificuldades de construção de uma base política de atuação articulada e permanente, associando a atuação institucional e os movimentos sociais em saúde, e frente às necessidades de fortalecimento das bases teórico-críticas e de construção de consenso em torno de ideias que busquem a superação da perspectiva conservadora hegemônica da política social.

O período após o golpe contra a presidenta Dilma Rousseff, é marcado por políticas de caráter recessivo, como o Teto de Gastos (Emenda Constitucional nº 95/2016) e medidas orientadas por interesses privatistas, materializados em contrarreformas promovidas em diversas frentes das políticas sociais, como previdência e trabalho. As alterações promovidas no campo da saúde seguiram essa mesma lógica, com foco em especial na Atenção Básica, aprofundando relações de terceirização da gestão e precarização do trabalho e contribuindo para a desresponsabilização estatal em relação à educação dos trabalhadores e trabalhadoras técnicas.

O contexto do último governo federal (2019-2022) tem responsabilidade maior pelo desmonte e ataques às políticas públicas e às instituições democráticas. O inventário de perdas em termos de direitos e de condições de vida para a classe trabalhadora é tarefa que envolverá esforços por longo tempo, concomitante ao processo de reconstrução e transformação em curso.

Este é o grande desafio do terceiro mandato do governo Lula. A 17ª CNS, ocorrida entre 2 e 5/7/2023, com o tema “Garantir Direitos, Defender o SUS, a Vida e a Democracia – Amanhã Vai Ser outro Dia”, volta a reafirmar a necessidade de se efetivar o SUS universal,integral e equânime; a defesa do Estado democrático de direito; a mobilização da sociedade, a relevância da participação popular e a perspectiva de políticas sociais progressistas, particularmente no campo de Trabalho e Educação na Saúde. 

 

Referências:

Lima, Julio C. F. Trabalho e Educação Profissional em Saúde. In: Braga, Ialê F. et al. O Trabalho no Mundo Contemporâneo: fundamentos e desafios para a saúde. Rio de Janeiro: Ed.

Fiocruz/EPSJV, 2016 

Lima, Júlio C.F.; Pereira, Isabel B. Dicionário da educação profissional em saúde. 2ª ed. rev. ampl. Versão digital. Rio de Janeiro: EPSJV, 2009.

Morosini, Márcia V. G. C.; Fonseca, Angelica F.; Baptista, Tatiana W. F. Previne Brasil, Agência de Desenvolvimento da Atenção Primária e Carteira de Serviços: radicalização da política de privatização da atenção básica? Cad. Saúde Públ., v. 36, p. e00040220, 2020.

Vieira, Monica et al. O Trabalho e a educação na saúde: a “questão dos recursos humanos.” In: Vieira, Monica, et al. Para além da comunidade: trabalho e qualificação dos agentes comunitários de saúde. Rio de Janeiro: EPSJV, 2011