A invisibilização do trabalho técnico negro no Brasil

Em 20 de novembro se comemora o Dia da Consciência Negra, data que marca o dia da morte de Zumbi, líder do Quilombo dos Palmares, em 1695.  A celebração busca resgatar e valorizar a história e a luta do povo negro contra a escravidão e o racismo.   

Em 2025, todos os 26 estados, incluindo os 5.570 municípios brasileiros; e o Distrito Federal; vão celebrar pela segunda vez o feriado do Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra. Instituída pela Lei nº 14.759/2023, a data marca a relevância da cultura e história afro-brasileira para o país. 

De acordo com o Censo Demográfico de 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a população brasileira é majoritariamente negra (pessoas pretas ou pardas), representando 55,5% - dos quais 45,3% são pardos e 10,2% são pretos.  

Apesar de serem maioria, não são valorizados no mercado de trabalho, já que a hora trabalhada de uma pessoa branca vale 67,7% mais que a de trabalhadores pretos e pardos, segundo estudo do IBGE. 

A falta de prestígio no mercado de trabalho 

No Brasil, apenas 27,3% dos profissionais de saúde com escolaridade de nível superior são negros. Este baixo número pode se explicar pela desigualdade racial no acesso ao ensino superior. Conforme divulgado pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD) Educação de 2023, dos jovens pretos entre 18 e 24 anos, apenas 16,4% cursam o ensino superior e 2,9% são graduados. 

Estes índices são refletidos no mercado de trabalho, já que a presença desta população em posição de liderança é rara, principalmente na área da saúde. Segundo o Conselho Federal de Medicina (CFM), apenas 3% dos médicos no Brasil são negros. 

Enfermagem, retrato de um “embranquecimento” forçado na Saúde 

É reconhecido que no período colonial do Brasil as mulheres pretas e pardas eram responsáveis elas práticas de cuidado e cura. Trabalharam intensamente como parteiras, amas de leite, empregadas domésticas, babás e outras funções relacionadas ao cuidado com o outro, principalmente os enfermos, idosos e crianças.  

Porém, quando estas tarefas passaram pelo processo de profissionalização, em 1860, a atuação destas mulheres foi negada devido ao racismo. Um exemplo: o ingresso na Escola de Enfermeiras do Departamento Nacional de Saúde Pública em 1923, posteriormente batizada de Escola de Enfermeiras D. Anna Nery, passou a depender não só da posse do diploma do curso normal, como de um pré-requisito não formalizado: ser de raça branca.  

A enfermagem brasileira institucionalizada nasceu buscando o embranquecimento. A imagem da “enfermeira padrão” cristalizou a identidade profissional através de pessoas da elite, consequentemente, brancas, que naquele período foi sinônimo de respeito social.   

A população negra permaneceu apartada destas atividades profissionais remuneradas até meados de 1930, quando a expansão dos serviços de saúde pelo governo de Getúlio Vargas absorveu contingentes de trabalhadores e possibilitou a ascensão de grupos sociais subalternizados. 

Mulheres negras, maioria da força de trabalho na Saúde  

Nas décadas de 1960 e 70, a proliferação de cursos profissionalizantes, voltados para as ‘populações mais pobres’ consolidou essa dinâmica de relações na área, naturalizando a ocupação de maioria negra nos postos de nível médio. Esta proliferação reverbera até hoje, já que o contingente de trabalhadores técnicos em saúde é formado em sua maioria por mulheres negras.  

A Enfermagem constitui o maior contingente de profissionais dentro do Sistema Único de Saúde (SUS). Segundo dados de pesquisa do Conselho Federal de Enfermagem (Cofen), que levantou dados sobre enfermeiras, técnicas e auxiliares de enfermagem, do total de profissionais pesquisados, 53% são negras.   

No quantitativo de profissionais e sua distribuição por raça e escolaridade constata-se que 57,4% são trabalhadoras negras com escolaridade de nível médio, sob o comando de 57,9% de enfermeiras brancas. Dentro dessas trabalhadoras de nível médio, existem as auxiliares e técnicas em Enfermagem. 

Aumento do contingente masculino na Enfermagem 

De acordo com a pesquisa “Demografia da Enfermagem”, divulgada pelo Ministério da Saúde em 11 de novembro, houve mudanças na composição por sexo da profissão.  

Em 2010, totalizavam, aproximadamente, 105 mil homens em todo Brasil, aumentando para 258 mil em 2021, o que representou um crescimento de 5,5% ao ano. Tal crescimento foi ligeiramente mais elevado entre os enfermeiros em comparação aos técnicos de enfermagem. 

Embora a composição da força de trabalho seja predominantemente feminina, o que se explica, em parte, pela reprodução social da divisão sexual do trabalho de cuidar, o aumento proporcional de homens entre enfermeiros e técnicos é sugestivo de mudanças de caráter cultural, socioeconômico e da dinâmica do mercado de trabalho de saúde. 

Composição racial da Enfermagem 

Ainda de acordo com a Demografia da Enfermagem, entre 2010 e 2021 o volume de registros de profissionais sem identificação de raça/cor foi sistematicamente elevado. Entre os enfermeiros e técnicos, as proporções médias de registros ignorados no período foram iguais a 39,4% e 27,1%, respectivamente. Tal subnotificação é um desafio persistente cuja natureza é complexa, pois oculta as iniquidades e prejudica o uso social e político da informação racial. 

Apesar da elevada incompletude, houve redução proporcional de profissionais identificados como brancos. Em 2010, 41,8% dos enfermeiros e 47,0% dos técnicos foram classificados como brancos. Em 2021, 35,3% e 32,9% dos enfermeiros e técnicos, respectivamente, foram alocados na referida categoria. 

Ao considerar o somatório de pretos e pardos, as estimativas avançam para crescimento anual próximo dos 10,0%, enfatizando incremento de profissionais de enfermagem declarados negros ao longo dos anos. Para os enfermeiros, observa-se que a frequência relativa de negros praticamente dobrou entre 2010 (26,3%) e 2021 (43,7%). 

Ainda que em menor magnitude, entre os técnicos, houve padrão semelhante àquele observado para enfermeiros, qual seja, aumento da representatividade de profissionais identificados como negros.

A invisibilização do profissional técnico 

Apesar de representarem uma força de trabalho essencial para o funcionamento do SUS, os profissionais técnicos seguem sendo invisibilizados nas discussões sobre valorização e reconhecimento profissional. Seu trabalho, muitas vezes associado ao cuidado direto com o paciente, é visto como uma extensão natural de papéis sociais historicamente atribuídos às mulheres negras, como o de servir, cuidar e sustentar. 

Essa configuração reflete um processo histórico de desigualdade social e racial que estrutura o mercado de trabalho brasileiro. A divisão hierárquica das ocupações na saúde evidencia a concentração de profissionais brancos nos cargos de direção e decisão, enquanto as mulheres negras se mantêm predominantemente em funções de nível médio, com menores salários e oportunidades de progresso. 

A ausência de políticas efetivas de valorização e qualificação específicas para essa categoria reforça a invisibilidade desses profissionais. Além disso, a dificuldade no acesso à formação superior e à especialização contribui para as desigualdades institucionais, restringindo o avanço destes grupos para posições de liderança. 

A manutenção do racismo estrutural 

A partir de estudos anteriores, com base nos dados do Censo de 2010, já se havia constatado que entre técnicos de enfermagem, havia 61,9% autodeclarados brancos, e entre enfermeiros, 54,3% autodeclarados brancos.  

O estudo também constatou que a renda dos profissionais brancos superou a de negros e pardos em até 25% (nível superior) e 11% (nível médio), o que está relacionado à reprodução de um padrão histórico de iniquidade racial, assentada em questões que apenas mais recentemente tem vindo à luz em debates na sociedade brasileira, como o racismo estrutural. 

A importância da representatividade 

Promover a equidade racial e de gênero no campo da saúde requer o reconhecimento do papel indispensável dos profissionais técnicos. A implementação de políticas públicas voltadas à valorização deste trabalho, à ampliação do acesso à educação e à representatividade institucional é fundamental para garantir um sistema de saúde mais justo, inclusivo e alinhado aos princípios do SUS. 

 

Texto: Nayara Oliveira*. Imagem: Tomaz Silva / Agência Brasil.

*Estagiária, sob supervisão de Paulo Schueler.