
Neste ano em que se comemoram 30 anos de implementação da Estratégia Saúde da Família, a coordenadora do Observatório dos Técnicos em Saúde (OTS) Márcia Valéria Morosini aponta para a necessidade de valorização das(os) técnicas(os) para a melhoria contínua da ESF.
Ao completar 30 anos, é possível listar as principais contribuições da Estratégia Saúde da Família para o SUS?
A Estratégia Saúde da Família, ao completar trinta anos, tem muito a comemorar, em especial, o fato de ter promovido a ampliação do acesso da população brasileira à saúde em todo o território nacional, alcançando hoje uma média de cobertura acima de 70% nos municípios brasileiros.
Atravessando recentemente uma conjuntura extremamente desfavorável, a ESF conseguiu manter-se como referência para a organização da Atenção Primária à Saúde no Brasil, destacando-se pela atenção territorializada, com orientação comunitária, desenvolvida por equipes multiprofissionais, que são referência para as pessoas que moram nas áreas de sua abrangência.
Além da notável cobertura, deve-se comemorar também a busca por uma atenção integral à saúde, guiada pelos princípios da universalidade e da equidade e orientada pela perspectiva da determinação social do processo saúde-doença.
Você abordou a conjuntura recente. Poderia citar os desafios pelos quais a ESF passou?
Não é tarefa simples almejar produzir um cuidado integral e universal, enfrentando desafios relativos ao financiamento e à gestão dos serviços e da força de trabalho, num país marcado pelo desfinanciamento das políticas sociais, em especial, do SUS. Mas, entre 2017 e 2020, o contexto político permitiu mudanças mais graves. Publicou-se uma nova Política Nacional de Atenção Básica e modificou-se o seu financiamento, assumindo um enfoque individualizante, tanto no modelo de atenção quanto na alocação de recursos, enfraquecendo a perspectiva do território, do trabalho comunitário, do cuidado integral e multidisciplinar.
Em relação à gestão do trabalho das equipes de Saúde da Família, o que você destaca?
A adesão à gestão por resultados, de perfil gerencialista e produtivista, avançou sobre a ESF, tensionando o trabalho, valorizando o desempenho orientado por metas, muitas vezes definidas “pelo alto” e não compatíveis com um processo de trabalho que precisa acolher e compreender as necessidades de saúde da população em suas várias dimensões. Não se pode também deixar de notar os efeitos deletérios da crescente transferência da APS brasileira para a gestão privada em municípios como Porto Alegre e Rio de Janeiro, entre outros, que contribuíram para ampliar a terceirização do trabalho e fragilizar as modalidades de contratação e a continuidade dos vínculos com as comunidades atendidas.
Como estudiosa do tema, que proposições você considera prioritárias para vencer os desafios relativos ao trabalho na ESF?
É importante que se promova um processo amplo de desprecarização do trabalho, para todos os profissionais, de nível superior e técnico, de modo a garantir os direitos e as condições para um trabalho digno, com atenção para a estabilidade que permite a continuidade do trabalho público, com mais autonomia em relação aos governos. Em relação ao processo de trabalho, lembro da necessidade de recomposição das equipes, da retomada de parâmetros adequados para a relação população-equipe, população-agente comunitária(o) de saúde, de modo a se viabilizar o cuidado de qualidade que a ESF precisa garantir. Além disso, é importante haver políticas públicas de formação profissional e educação permanente, voltada para a ESF, orientadas para os compromissos ético-políticos da saúde como direito, de modo a qualificar o trabalho coletivo na APS brasileira.
Passados quase dois anos da atual gestão do Ministério da Saúde, você acha que caminhamos para o atingimento destas proposições?
Desde 2023, está em curso um processo de desconstrução das mudanças implementadas principalmente pela PNAB 2017 e pelo Previne Brasil (política de financiamento). Podemos citar, entre outras medidas, a retomada do Piso da Atenção Básica, a reconstrução das equipes multiprofissionais (e-Multi) e a retomada do Programa Mais Médicos. Como perspectiva futura, cabe indicar a necessidade de se reverter a privatização da gestão dos serviços e da terceirização da força de trabalho da ESF, assim como avançar em meios de promover a centralidade da ESF como modelo de atenção prioritário para a APS, assim como no seu papel de ordenamento do cuidado em rede.
Dentro desta perspectiva, como o trabalho das(os) técnicas(os) deve ser encarado?
Em relação aos técnicos que atuam na ESF, como os agentes comunitários de saúde, os técnicos de enfermagem e os técnicos de saúde bucal, eles desempenham papel fundamental que precisa ser mais bem valorizado, considerando as particularidades da atuação na APS. Chamamos a atenção especialmente para a dimensão educativa do trabalho dos técnicos, cuja presença se faz em vários momentos do cuidado promovido na ESF, podendo contribuir para o estreitamento de vínculos, a compreensão do sofrimento, das relações sociais e culturais e das possibilidades de atuação das equipes no contexto dos diferentes territórios e condições de vida.
Jornalista: Paulo Schueler