‘O salário das profissionais de enfermagem é inferior ao salário mínimo necessário’

Em entrevista ao Observatório dos Técnicos em Saúde, os pesquisadores do Grupo de Pesquisa Saúde, Sociedade, Estado e Mercado (Grupo SEM) Paulo Henrique De Almeida Rodrigues e Thauanne De Souza Gonçalves, do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS-UERJ); e Inês Leoneza De Souza, da Universidade Federal do Rio de Janeiro campus Macaé (UFRJ Macaé) abordam os impactos da precarização do trabalho, bem como da perda de direitos, sobre as(os) profissionais de Enfermagem no Brasil.

 

Dos trabalhadores registrados no Conselho federal de Enfermagem (Cofen), a maioria é de técnicos e auxiliares. Como tem se construído a relação entre graduados e trabalhadores técnicos, em termos e demandas, pautas e também solidariedade e identidade de classe?

Inês: Essa composição de equipe nasce dividida e fragmentada na enfermagem; hoje composta por enfermeiras, técnicas e auxiliares. Antigamente com as Atendentes de Enfermagem. A principal força de trabalho da enfermagem está no nível médio/fundamental, especialmente para área de trabalho de assistência, conhecida como hospitalar (nível terciário). O diferencial de valorização se encontra dentro do SUS, nas ESF com enfermeira de Atenção básica/ primária, que representa uma mudança de lógica do modelo assistencial centrado tradicionalmente na doença.

Thauanne e Paulo Henrique: Identidade de classe é algo que falta muito na enfermagem. A ideologia neoliberal marca muito a visão das profissionais sobre sua profissão e carreira. As profissionais da enfermagem repetem sempre que a “classe” ou “categoria” é muito desunida, que a equipe de enfermagem atua de forma conflituosa e competitiva. O que, infelizmente, é verdade na realidade da assistência, exatamente pela frágil consciência de classe. Nós entendemos que essa realidade da profissão é resultante da superexploração dessa força de trabalho - que se traduz em vários vínculos de trabalho, elevada carga horária semanal e salários baixos. As profissionais são induzidas pela difusão das ideias neoliberais, especialmente pela mídia e pelas redes sociais, a pensar que a saída para esses problemas será individual, que a culpa é delas pelas condições de trabalho precárias. E isso tem impulsionado as discussões que nós travamos na categoria. Atualmente a ideologia do empreendedorismo, de cunho neoliberal, tem se disseminado entre as alunas de graduação e as jovens enfermeiras. Muitas são levadas a achar que a saída para a precarização do trabalho é a pejotização. Nós defendemos que a luta por melhores condições de trabalho deve abarcar todas as profissionais.

 

Em entrevista ao site Outra Saúde, Inês afirmou que “a enfermagem acaba sendo a face mais visível da superexploração” no setor Saúde. Quais dados sustentam esta avaliação?

Thauanne: Consideramos que a superexploração pauta todas as relações de trabalho nos países dependentes. Mas alcançam os trabalhadores de formas distintas. A enfermagem, composta majoritariamente por profissionais de nível médio e mulheres negras, são a face mais marcante da superexploração dos profissionais de saúde no Brasil.

Inês: Para uma análise sobre a força de trabalho em saúde, especialmente das profissionais de enfermagem, se faz necessário conhecer em quantidade e qualidade o perfil dessas trabalhadoras. Suas condições de trabalho por região do país, os estabelecimentos de serviços de saúde ofertados, sejam públicos e privados; os mais diversos tipos de vínculos trabalhistas. Como citado em nosso trabalho, apresentado no Congresso de Planejamento e Gestão da ABRASCO em Fortaleza, três mecanismos principais são definidos como meios pelos quais opera a superexploração (LUCE,2018): 1 - O pagamento da força de trabalho abaixo do seu valor. 2 - O prolongamento da jornada de trabalho acima dos limites normais, 3-  O aumento da intensidade do trabalho. Infelizmente a força de trabalho de enfermagem brasileira é atingida por esses três mecanismos. Isso significa que há um limite humano para a capacidade de trabalho. Ultrapassar esses limites gera o consumo do fundo de vida. Ou seja, prejudica a saúde e a própria expectativa de vida das pessoas. Na Teoria Marxista da Dependência compreendemos que essa é a maior consequência da superexploração para a saúde do trabalhador.

Paulo Henrique: É importante lembrar que boa parte do trabalho da força de trabalho de enfermagem, principalmente nos hospitais e serviços de emergência e urgência, exige esforço físico para realizar manobras com os pacientes, o que aumenta o desgaste físico das profissionais.

 

Esta exploração ocorre da mesma forma no SUS e no setor privado? Entre enfermeiros, técnicos e auxiliares?

Thauanne: Os dados da pesquisa do Perfil da Enfermagem de 2013, publicada em 2017, demonstram condições mais precárias de trabalho nas técnicas e auxiliares em comparação com as enfermeiras e no setor privado em comparação com o público. Esperamos que na atualização dessa pesquisa que está sendo realizada, essa condição permaneça. Contudo cabe destacar que o salário médio da enfermeira diminuiu mais acentuadamente, enquanto os de técnicas e auxiliares, apesar de continuarem bastante inferiores ao das enfermeiras, diminuiu mais discretamente. Também, temos visto novas formas de trabalho, como o crescimento da contratação por organizações sociais (OS), com a consequente redução da participação dos vínculos estatutários, no setor público, assim como a “pejotização”, no setor privado, que é a contratação das pessoas como empresas, ou “empreendedoras de si mesmas”.

O gráfico abaixo ilustra:

 

Paulo Henrique: Na verdade todos os salários diminuíram - mais acentuadamente para enfermeiras com nível superior - a partir do golpe de 2016, cujo objetivo era justamente reduzir salários e direitos para aumentar os lucros.

Inês: A chamada flexibilização nos contratos de trabalho, decorrentes das alterações na legislação trabalhista, após o golpe de 2016, com significativa perda de direitos, impacta diretamente na estabilidade dos vínculos empregatícios, bem como, na desvalorização da carreira pública. A crescente pressão dos interesses dos capitais privados no setor de saúde tem feito o SUS funcionar mais para favorecer esses interesses do que para assegurar o direito constitucional à saúde de todas as cidadãs e cidadãos. Esses interesses defendem que para alguns é a solução entregar o setor à rede privada. Porém, entendemos que a saúde das pessoas não é mercadoria, é um setor de prestação de serviço essencial, que não tem que dar lucro. Vai explicar isso aos “empresários” do setor.

 

Há marcadores de raça e gênero nesta exploração? 

Thauanne: Sim. A enfermagem é uma profissão predominantemente de mulheres (85%) e de maioria negras (39% enfermeiras, 58% técnicas e auxiliares, em 2013). A formação sócio-histórica da profissão indica que parte das raízes da superexploração estão nessa característica, pois o trabalho de cuidado historicamente não era remunerado. Compreender sobre a reprodução social é relevante para este entendimento.

Inês: Cuidar nunca foi atividade valorizada, principalmente num país colonizado, dependente, racista e misógino, como o Brasil. Há muito o que corrigir, reparar, refutar e principalmente inverter nas relações sociais estabelecidas por aqui. Os povos originários que o digam! Nascer mulher neste país, coloca você em desvantagem na posição hierárquica desta sociedade patriarcal. tudo vai depender do ponto de vista.

 

É ainda recente a luta da Enfermagem por um piso nacional, que mobilizou a categoria nacionalmente. Ficou algum aprendizado de mobilização política na categoria? Houve algum salto qualitativo em termos de organização?

Thauanne: A luta pelo piso salarial foi marcada por disputas que tem muitas ambivalências e carecem de análises profundas, que estamos tentando produzir…

Inês: Esse assunto dá uma tese… A categoria possui seus órgãos de representatividade e luta, a ABEn - Associação Brasileira de Enfermagem, os sindicatos das enfermeiras, das técnicas e auxiliares, o Conselho de Enfermagem, a Federação das enfermeiras, etc. Foi criado o Fórum Nacional da Enfermagem para coordenar esse movimento. A pauta principal é de carga horária adequada e salário digno. São mais de 30 anos de luta e reivindicações para a enfermagem brasileira. Olhar só para o piso salarial é desconhecer a realidade das condições de trabalho por todo o país e principalmente atende aos mecanismos de superexploração. A pergunta é: A quem interessa a manutenção de trabalho precarizado? Que modelo de sociedade estamos fomentando? Esse não é um “privilégio” infelizmente apenas da enfermagem brasileira… 

 

O que esta luta tem a ensinar diante da conjuntura atual, de acirramento da extrema-direita e chantagens do mercado? Correntes neoliberais se organizam contra qualquer arremedo de justiça tributária e a manutenção dos mínimos constitucionais para a saúde...

Inês: Muitas coisas. A começar pela garantia de Direitos que constam hoje em nossa Carta Magna, que está longe de ser implementada para todos os cidadãos brasileiros. A quem o Sistema estabelece como prioridade de atenção e cuidados? O quanto você tem no bolso é mais importante…

Thauanne: Nós temos discutido sobre o piso salarial no sentido de compreender tanto como uma conquista que gerou mobilização das organizações da categoria, quanto como uma forma de desmobilização das lutas maiores desse grande contingente de trabalhadores, que alcançou algo menor do que deveria. O piso salarial é inferior ao Salário Mínimo Necessário (parâmetro do DIEESE que consideramos como uma remuneração adequada), não tem cláusulas de reajuste, não está associado à jornada de 30h nem vinculado ao salário mínimo. Sem contar todas as táticas utilizadas para não pagar o piso. Então na prática não muda a realidade das condições de trabalho desses profissionais. Isso tudo é um grande vislumbre sobre como funcionam as disputas relacionadas à luta de classes no Brasil.

Paulo Henrique: É necessário atentar para o fato de o maior contingente da força de trabalho ser empregado no nível hospitalar, no qual prevalece o setor privado, que é o maior interessado em remunerações baixas para aumentar seu lucro.

 

Estudo do Grupo SEM indicou que a queda na remuneração média foi acompanhada pela multiplicação de vínculos. Grosso modo, poderíamos afirmar que se trata de algo semelhante à "uberização"?

Inês: Sim, bem como o estímulo a “empreender” como se o setor de saúde pudesse abrir mão de princípios fundamentais para a existência e sobrevivência da humanidade. A lei de mercado não se aplica neste tipo de serviço. A não ser que transforme saúde em mercadoria e o lucro seja seu objetivo. Quando a saúde é vista pela ótica do mercado e não do cuidado humano, de pessoas para outras pessoas, a regulação passa a se dar pelas Leis do mercado e não pela prioridade à vida. Saúde aqui como Direito. Direito Humano. Tá cansativo dizer o óbvio!

Thauanne: E voltamos à primeira pergunta da falta de consciência de classe. As profissionais são induzidas a ideia que é empreendendo que encontrarão a saída para as péssimas condições de trabalho e isso não é verdade. Muitas estudantes de enfermagem têm adotado essa ideia desde a graduação, criado grupos para compartilhar essas ideias. Mas a profissão de enfermagem precisa ser bem remunerada dentro do sistema de saúde, porque um não tem sentido sem o outro. O fenômeno da uberização afeta as condições de trabalho, mas também coloniza as ideias.

Paulo Henrique: E os dados sobre a proporção de vínculos precários e “pejotização” são mais difíceis de serem encontrados, o que “esconde” a realidade. A Reforma Trabalhista também influenciou nisso, bem com a sustentabilidade do Ministério do Trabalho, que chegou a ser extinguido durante o governo Bolsonaro.

Confira o gráfico de tipos de vínculos:

 

Esta relação também sugere que os trabalhadores da Enfermagem só conseguem remuneração que permita sua sobrevivência com jornadas extenuantes?

Thauanne: Sim. O salário das profissionais de enfermagem é inferior ao salário mínimo necessário. Para alcançar esta remuneração, precisam trabalhar em múltiplos vínculos ou fazer muitas horas extras.

Inês: Temos uma categoria que durante seu processo formador, em sua grande maioria, não recebem/acessam as abordagens dos aspectos relativos ao seu papel de trabalhador no sistema de saúde, com direitos e deveres. Atravessados pelas políticas e políticos de plantão. Uma visão crítica do que é ser trabalhador num país com tanta desigualdade social, leva a uma ilusão de que trabalhar mais vai melhorar a vida.

 

Diante deste cenário, qual a importância da pauta da Jornada de 30h?

Inês: A jornada de 30h é a carga horária limite para qualquer trabalhador de saúde. Com direito a descanso, lazer e qualidade de vida. Para não colocar em risco a vida do paciente e especialmente a do trabalhador. Essas horas a mais tem levado aquilo de maior valor para qualquer indivíduo, o seu Tempo. Não tem dinheiro que pague!

Thauanne: Nos estudos sobre superexploração da força de trabalho, tem um aspecto que podemos destacar que é o consumo do fundo de vida do trabalhador. O trabalhador superexplorado tem seu fundo de vida consumido. Isso é sua saúde, sua expectativa de vida, sua dignidade. E mesmo que a remuneração se tornasse adequada, se não houver redução da jornada, o trabalhador continua sem conseguir se recuperar de um dia de trabalho para enfrentar o seguinte. Sem contar de toda a vida além do trabalho que deixa de existir com as longas jornadas. Portanto, a redução da jornada é tão fundamental quanto o aumento do salário.

 

No caso de sua implementação sem a redução salarial e a múltipla vinculação, quantos empregos diretos poderiam ser gerados na Enfermagem?

Inês e Paulo Henrique: Esse desdobramento deverá ser pautado em outras frentes de pesquisa. No momento é importante destacar que múltiplas vinculações é sempre sinal de superexploração. Como o salário é baixo, o profissional é induzido a ter múltiplos vínculos, o que gera uma jornada semanal de trabalho muito longa e muitas vezes sub-registrada. E isso influencia também na qualidade do trabalho da enfermagem, gerando risco para os pacientes e para o profissional.

Thauanne: A enfermagem tem uma taxa de desemprego dos graduados bastante alta. Uma pesquisa recente apontou em torno de 25% dos profissionais. A redução da jornada poderia ampliar a geração de empregos, mas para isso é essencial aumentar os salários. Se não, os profissionais seguirão trabalhando em múltiplos vínculos e estendendo a jornada. Nós utilizamos o salário mínimo necessário do DIEESE como parâmetro para um a remuneração adequada ao trabalhador. E nem com a aprovação do piso, o salário da enfermagem alcança esse valor, que em novembro de 2024 era de R$ 6.959,31.

 

Passados 7 anos, quais os principais impactos da reforma trabalhista sobre a Enfermagem?

Inês: As mais desastrosas possíveis. A insegurança gera problemas emocionais e de sobrevivência da categoria em tempos de muitas doenças emergentes e tratáveis.

Thauanne: Diversos. Teve piora nas condições de trabalho. Ultimamente, temos sido surpreendidos com muitas denúncias dos profissionais sobre a modificação dos vínculos de trabalho forçada pelo empregador. Há uma forte pressão para a pejotização dos profissionais no setor privado e para a terceirização no setor público.

 

Vocês enxergam, no cenário próximo, possibilidades de reversão para estes impactos?

Thauanne: Há espaço para luta. A profissão é essencial para o SUS. Mas no horizonte temos vislumbrado poucas melhorias para os profissionais de saúde no Brasil. As soluções que vêm sendo apontadas pelo Ministério da Saúde para resolver os problemas da saúde pública brasileira, têm apontado para o aprofundamento da precarização do trabalho. Como a terceirização da gestão dos hospitais federais do Rio de Janeiro. E o modelo das OSs que por exemplo no Rio de Janeiro domina completamente a Atenção Primária à Saúde.

Inês: Como enfermeira e professora, acredito na educação como um processo formativo para ampliar/ multiplicar saberes e práticas que valem a pena. Agregando pessoas interessadas na luta, na causa, na coisa pública. Na troca de conhecimento, há aqueles que possuem um acúmulo de experiências e que funcionam como facilitadores. Que conduz à reflexão, ao entendimento do processo, dessa engrenagem do sistema em vigência. Isso exige de todos nós sensibilidade e organização coletiva. Não é algo dado/posto, é construção. Aqui deixo registrado o papel fundamental do professor Paulo Henrique, coordenador do grupo SEM. Aprendo a cada discussão, encontro, pesquisa, reunião. Gratidão! Temos o compromisso de criar possibilidades para o entendimento e compreensão, neste contexto em particular de exploração e precarização do trabalho em saúde/ enfermagem.

 

Jornalista: Paulo Schueler