
Com cerca de duas décadas de atuação junto à APS de Petrópolis (RJ), Marina Rodrigues compartilha suas experiências
Marina Rodrigues é uma profunda conhecedora da realidade dos agentes comunitários de saúde de Petrópolis, cidade da região serrana do Rio de Janeiro. Em 2006, começou sua trajetória no ordenamento da assistência social do município com a implantação dos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS).
Desde esse período, recém-formada em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro, lida com os desafios de junto às populações dos territórios e comunidades.
“Eu moro em uma comunidade no segundo distrito de Petrópolis, onde minhas raízes se entrelaçam com a história desse lugar. Há quase 30 anos, eu via minha mãe apoiar as ações da primeira agente comunitária de saúde da nossa região. Nossa varanda, muitas vezes, se transformava em consultório improvisado, onde crianças eram pesadas e atendimentos aconteciam sob o olhar atento da vizinhança. Guardo com carinho a lembrança de Tânia, uma mulher simples, mas de trajetória grandiosa. Mais do que a primeira agente comunitária de saúde, ela era uma líder nata, uma referência para todos nós. Seu compromisso com as questões sociais da comunidade, marcada por tantas lutas e desafios, moldou minha própria caminhada com um olhar para importância para os agentes comunitários como que são os elos vivos do SUS, os que fazem da resistência cotidiana uma força, um ato de esperança”
Quando ingressou na Prefeitura de Petrópolis, Marina percebeu a escassez de assistentes sociais na Secretaria de Assistência Social. A política de assistência social ainda estava em processo de estruturação, e o Sistema Único de Assistência Social (SUAS) dava seus primeiros passos rumo à efetivação. “Entreguei meu currículo e me disseram: “Olha, vamos abrir um CRAS e, a partir de amanhã, você começa”. Recém formada, era um começo desafiador”, relembra Marina que mergulhou no trabalho com a determinação de quem entende a importância de fortalecer as redes de proteção social.
Movida pela curiosidade e pelo desejo de entender melhor as políticas públicas, mergulhou em pesquisas para compreender a estrutura daquele serviço e a realidade do território onde iria atuar. “Queria saber quem eram as pessoas com quem eu trabalharia, quais eram suas necessidades e desafios”, relembra.
Na época, o município contava com o programa de segurança alimentar "Cesta Cheia, Família Feliz", que havia sido criado dentro da Secretaria de Saúde. Com a organização da assistência social na cidade, o programa passou a ser monitorado de forma intersetorial, envolvendo tanto a saúde quanto a assistência social. “A gente começou a trabalhar juntos, construindo essa articulação quase que intuitivamente. Mas os agentes comunitários de saúde sofriam uma grande pressão da população, que não entendia os critérios de elegibilidade do programa. Eles começaram a ir até o CRAS em busca de apoio, para explicar às famílias como funcionava o acesso ao benefício”, conta Marina.
Foi nesse momento que surgiu uma reflexão: os agentes comunitários de saúde eram figuras legítimas do território, com uma compreensão profunda das dinâmicas locais. Para Marina, seu papel poderia ser fortalecido com uma integração mais efetiva entre assistência social e saúde. A experiência revelou a necessidade de um trabalho conjunto, onde o conhecimento dos ACS sobre o território e a realidade das famílias pudesse ser valorizado e potencializado.
Diante desse cenário, as equipes passaram a organizar reuniões nas casas dos moradores e nos mais diversos espaços comunitários, explicando os critérios de programas como o Bolsa Família e estreitando o diálogo com a comunidade. Essa aproximação foi importante para consolidar sua percepção sobre o papel estratégico dos ACS como elo entre o Estado e a população, principalmente em territórios de alta vulnerabilidade social. Desde então, tem atuado nas ações integradas e humanizadas entre as políticas públicas nos territórios, o trabalho tem sido guiado pela busca por políticas públicas, integradas e transformadoras.
Ao chegar ao território com a estrutura da assistência social, Marina percebeu que não era necessário refazer diagnósticos já existentes. O conhecimento acumulado pelos agentes comunitários de saúde (ACS) poderia ser o ponto de partida para a construção de uma leitura mais aprofundada da realidade local. “Entendi que, em vez de começar do zero, poderíamos olhar para o território a partir da experiência dos ACS, valorizando seu conhecimento para estruturar a atuação da proteção social básica do Sistema Único de Assistência Social”, explica.
A territorialização dos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) seguiu um planejamento estratégico, levando em conta a proximidade entre comunidades e a capacidade de atendimento conforme o porte do município. Petrópolis iniciou sua estruturação com cinco unidades, cada uma contando com uma equipe mínima composta por um assistente social, um psicólogo e um técnico administrativo.
A experiência dos ACS foi central para consolidar esse modelo. Seu olhar atento sobre as vulnerabilidades locais e as necessidades da população permitiu à assistência social construir uma estratégia de atuação integrada, fortalecendo o atendimento e ampliando o conhecimento e o acesso à informação para a população sobre a proteção social e a saúde como direito.
Ainda em 2006, o trabalho de assistência social em Petrópolis começou a ganhar forma a partir do pensar as áreas de atuação e cobertura nos territórios. Pensamos em relacionar a área de atuação do Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) com as equipes da Estratégia Saúde da Família, entendendo onde estavam os postos de saúde e quem eram os agentes comunitários de saúde (ACS) que atuavam na região, apesar de naquela época o município ainda ter pouca área com cobertura da atenção primária. “Era uma espécie de narrativas cartográficas para entender os recortes e limites territoriais.”
Os agentes comunitários identificavam as necessidades das famílias e encaminhavam os casos ao CRAS. Quando percebiam a necessidade de intervenções mais amplas, a equipe da assistência ia até as comunidades para realizar as ações coletivas. “Foi um processo de aprendizado imenso, uma verdadeira escola. Esses homens e mulheres da comunidade me ensinaram muito sobre o território e suas realidades”, destaca. Marina lembra com carinho dos ACS que foram seus grandes parceiros percussores nesse percurso. “Zélia, Amélia, Valdir e Sueli foram meus principais companheiros nessa jornada”. Foram verdadeiros professores, que mostraram na prática o significado do trabalho comunitário e da escuta”, conclui.
Atualmente, Marina integra a equipe do Fórum Itaboraí, Política, Ciência e Cultura na Saúde/Fiocruz Petrópolis, onde atua com uma nova perspectiva: fortalecer ações territoriais, ampliar a participação popular nas políticas públicas e contribuir para a organização comunitária em defesa do SUS.
Catástrofes e o papel dos agentes comunitários
Além de ser reconhecida como “cidade imperial”, Petrópolis é marcada por catástrofes decorrentes da ocupação desordenada de sua geografia (desfavorável) acidentada, que historicamente levou a cidade às manchetes por conta de enchentes e deslizamentos de terra, especialmente durante o período de verão.
Marina guarda as marcas destes momentos, relevada pela emoção com que descreve, em sua conversa com o OTS, situações vividas durante alguns destes momentos de catástrofe. Ela atuou tanto na ponta, diretamente com as comunidades afetadas, quanto nas orientações de ações de assistência social e saúde enquanto atuante nessas políticas.
Em 2011, por exemplo, a cidade foi atingida por uma das maiores tragédias de sua história, com chuvas torrenciais que causaram deslizamentos e enchentes, resultando em mortes, desabrigados e um cenário de devastação na região do terceiro distrito. Na época, Marina ainda trabalhava diretamente na ponta. Ela relata que, em situações de desastre, a primeira resposta vem da própria comunidade, e os agentes comunitários de saúde são fundamentais nesse processo. No ano de 2022, a cidade enfrentou outra grande tragédia, que impactou profundamente sua estrutura, trazendo desafios ainda maiores para a população.
“Eu falo sempre que quando acontece uma situação de desastre, a primeira resposta quem dá é a própria comunidade. Não são os serviços, mas é a própria comunidade. E, numa situação de desastres, o ACS também é atingido diretamente, perdem membros de sua família, sua casa, ele próprio precisa ir para um abrigo, e enquanto cuida de sua situação, e de sua família, também precisa cuidar de sua comunidade. Estes profissionais merecem um acompanhamento de saúde mental mais acurado. Apesar dele ter toda uma preparação, seja pela Defesa Civil ou através de incentivos do próprio Ministério da Saúde, como orientações para lidar em situação de desastre, o ACS, antes de qualquer coisa, é gente. Ele está ali, no local, para dar a pronta-resposta. E a própria comunidade enxerga ele como essa referência”, defende.
Após a tragédia, Marina reflete sobre as consequências a longo prazo para as comunidades atingidas. "Sempre me pergunto: o que fica? O que vem depois da tragédia?", diz.
Com o fechamento dos abrigos, muitas famílias acabam sendo acolhidas por parentes, mas essa mudança traz muitos sofrimentos. O pertencimento ao território e os vínculos comunitários são rompidos, gerando sofrimento emocional profundo. Nesse cenário, o ACS, absorve as questões sociais e psicológicas das famílias desabrigadas. É quem através da visita domiciliar, de uma escuta diária enquanto caminha pela comunidade que busca entender por que uma pessoa não conseguiu acesso ao aluguel social, identifica sinais de sofrimento psíquico e busca as redes de apoio e encaminha para os atendimentos necessários. São esses profissionais que permanecem no território, acompanhando as famílias muito além da tragédia", complementa Marina.
A reflexão acadêmica
A reflexão sobre o trabalho sempre esteve presente na trajetória de Marina, que ingressou no Mestrado Profissional em Educação Profissional em Saúde, ofertado pela Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz). Marina observa uma crescente burocratização do trabalho dos ACS, com os novos formatos sociotécnicos do trabalho de caráter administrativos que muitas vezes os afastam do contato direto com as comunidades atendidas; além da falta de suporte tecnológico e outros entraves estruturais. Apesar disso, ela vê avanços e a conquista de direitos, frutos de lutas e mobilizações.
Atualmente, Marina se dedica ao estudo das potencialidades do EdPopSUS como ferramenta para a formação crítica e reflexiva dos Agentes Comunitários de Saúde (ACS). Seu objetivo é contribuir para o fortalecimento e a atuação desses profissionais nos territórios, ampliando sua visão de mundo e conectando-os a diferentes realidades. Para ela, o programa representa um espaço de reconexão com a comunidade, construção de redes de apoio e ruptura com o status quo, sendo fundamental para a sustentabilidade do trabalho dos ACS e para uma atuação transformadora.
"Sou uma romântica quando se trata do EdPopSUS", admite Marina. Enxergo esse programa como um respiro crítico, uma alternativa para ampliar a compreensão da realidade e fortalecer tanto os territórios quanto a práxis dos agentes comunitários. Além disso, ele se configura como uma poderosa estratégia de valorização do próprio território. A cada nova turma, testemunhamos um despertar sutil, mas profundo, nos ACS, um olhar que se amplia, uma escuta que se afina, uma percepção de mundo que se transforma e se fortalece no encontro com outras realidades.”
Com anos de experiência acompanhando os agentes comunitários e seus processos de formação, Marina vê no EdPopSUS um espaço singular. "Foi o único lugar onde vi esses profissionais tendo contato com outras culturas, outras formas de pensar. Ali, eles encontram um ambiente de construção coletiva, diálogo e escuta ativa, permitindo a formulação de novas estratégias contra-hegemônicas para a valorização dos territórios", reflete.
Jornalista: Paulo Schueler. Imagens: Arquivo pessoal (Marina Rodrigues)