
Em agosto, o Ministério da Saúde apresentou a minuta de revisão e atualização da Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (PNASPI) em audiência pública que reuniu representantes dos 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs), presidentes dos Conselhos Distritais de Saúde Indígena e organizações que contribuíram com a elaboração da proposta. O documento consolida ainda as propostas acolhidas durante o ciclo do Seminário Saúde Indígena: Um SasiSUS para o bem viver, que entre os meses de julho de 2024 e 2025 foi realizado nas cinco macrorregiões do Brasil.
Na ocasião, o ministro da Saúde, Alexandre Padilha, citou o momento histórico de construção da primeira PNASPI, nos anos 1990, ao mencionar a “Lei Arouca” (9.836/1999), que instituiu o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SasiSUS) dentro do Sistema Único de Saúde (SUS) – o dispositivo busca garantir o acesso à saúde aos povos indígenas, considerando suas especificidades geográficas, demográficas, culturais e suas realidades locais. “Foi um marco para o SUS, porque estava sendo criado algo novo, que não existia, um subsistema dentro do SUS... De lá para cá muita coisa mudou. A população idosa indígena cresceu muito, e isso demanda uma atenção e assistência diferentes. Assim como as mudanças climáticas, que afetam de forma impactante a saúde dos povos indígenas”, afirmou Padilha.
Dentre seus eixos, a minuta apresentada pela Sesai possui o item "Gestão do Trabalho e Educação na Saúde Indígena". A respeito do mesmo, o documento defende “o papel estratégico dos Agentes Indígenas de Saúde (AIS) e Agentes Indígenas de Saneamento (AISAN) como mediadores entre os saberes tradicionais e os sistemas oficiais de saúde”.
Cerca de 20 mil trabalhadores de saúde atendem todas as terras indígenas do Brasil. Do total, mais de 7 mil profissionais são AIS e AISAN que atuam junto às próprias comunidades. Embora tenham seu papel estratégico reconhecido, estas duas profissões seguem sem a devida regulamentação.
Desde 2019, tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 3514/2019 - da então deputada Joenia Wapichana (Rede/RR) - para solucionar a questão. Desde 15 de julho, a pauta aguarda apreciação da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) da casa, após ter recebido parecer favorável da relatora neste órgão, Lídice da Mata (PSB-BA).
Em entrevista ao Observatório dos Técnicos em Saúde, o secretário de Saúde Indígena (Sesai/MS), Weibe Tapeba, afirmou aguardar a aprovação do 3514/2019. “Para nós, essa aprovação é fundamental, porque esses profissionais [AIS e AISAN] são o elo direto entre a comunidade e as equipes de saúde. Eles não apenas apoiam os serviços de atenção básica, mas também fazem educação em saúde, prevenção de doenças e ajudam a adaptar o modelo de atenção às especificidades culturais de cada povo indígena. Enquanto aguardamos a aprovação, a Sesai vem trabalhando em notas técnicas e orientações para deixar bem claras as atribuições desses profissionais nos territórios, garantindo respaldo técnico e integração com as equipes multiprofissionais", afirmou.
Articulação com novas carreiras da Funai
Procurada por este OTS para comentar a demora na aprovação da legislação e a relação destas duas carreiras com as recém-criadas de "Especialista em Indigenismo" e de "Técnico em Indigenismo" através da Lei 14.875/2024, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) – presidida desde 2023 por Joênia Wapichana - respondeu através de nota que “ainda no início da tramitação [do PL 3514/2019], a Autarquia encaminhou à Câmara dos Deputados manifestação favorável [à regulamentação das profissões], respaldada por Informação Técnica elaborada pela Coordenação de Acompanhamento de Saúde (Coasi), unidade vinculada à Coordenação-Geral de Promoção dos Direitos Sociais (CGPDS)”.
A Funai afirma ainda ter desempenhado ao longo dos últimos anos “papel central nas discussões sobre o fortalecimento dessas funções, participando ativamente das consultas regionais para atualização da PNASPI. O documento reafirma que a formação e a qualificação de indígenas nessas funções são estratégias para ampliar a autonomia e a apropriação, pelos povos indígenas, de conhecimentos e recursos técnicos da medicina ocidental, somando-os às terapias e práticas culturais próprias. Nessas instâncias, a Fundação tem defendido a valorização dos AIS e AISAN, com ênfase na qualificação das condições de trabalho, remuneração, direitos trabalhistas, definição de papéis nas equipes, relações de trabalho e processos de formação”.
Por fim, a Fundação afirma que “a Funai e a Sesai, no âmbito de suas atribuições institucionais, atuam como parceiras na execução da política indigenista. Dessa forma, a regulamentação das carreiras de AIS e AISAN é construída de maneira transversal, com base no intercâmbio de informações e no trabalho conjunto entre as duas instituições”.
Regulamentação e necessidade de fixar os AIS e AISAN nos territórios
Pesquisadora do grupo de pesquisas Saúde, Epidemiologia e Antropologia dos Povos Indígenas da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz) e integrante do Grupo de Trabalho (GT) de Saúde Indígena da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), Ana Lúcia Pontes lamentou em entrevista ao Observatório a morosidade para a regulamentação das profissões.
“Do ponto de vista dos agentes indígenas de Saúde e de Saneamento, continuamos com o cenário de uma dívida histórica. Precisamos de uma política de valorização e ampliação, como está previsto na PNASPI, que por si só não garantirá a implementação das demandas. Há necessidade de envolvimento da SGTES [Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde] em ações de Educação Permanente e qualificação, é preciso rever e ampliar o quantitativo por DSEIS, e ampliar a contratação. É necessário desenvolver projetos de elevação da escolaridade, em conjunto com o MEC. Espero mais iniciativas nesse sentido”, ressaltou Pontes.
As colocações da pesquisadora dialogam com duas necessidades identificadas na minuta da nova PNASPI, "a diminuição da rotatividade e a garantia da qualidade técnica na assistência prestada dentro dos parâmetros da legislação trabalhista".
Tapeba reconhece o desafio e afirma que fixar os AIS e AISAN nos territórios ultrapassa a questão salarial. “Claro que a remuneração importa, mas o que faz diferença de verdade é oferecer formação continuada, apoio no dia a dia, redes de acolhimento psicossocial e um ambiente de trabalho onde esses profissionais se sintam valorizados pela própria comunidade”, avalia. Para o secretário, a regulamentação das duas categorias permitiria “mais segurança jurídica e espaço para pleitos salariais”.
O titular da Sesai anunciou ainda a estruturação de um Centro Nacional de Informações sobre o Trabalho e Educação na Saúde Indígena. A nova estrutura permitiria a Sesai/MS “monitorar rotatividade e pensar estratégias mais eficazes para manter esses trabalhadores onde eles são mais necessários: junto de seus povos".
Programa Nacional de Educação Permanente em Saúde Indígena
Em paralelo, a Sesai está formulando um Programa Nacional de Educação Permanente em Saúde Indígena. De acordo com Tapeba, a novidade é fruto da escuta nos territórios. “Fizemos seminários regionais em todo o Brasil para ouvir trabalhadores, lideranças e gestores locais. A partir daí, estamos montando uma agenda formativa nacional que respeite as realidades locais e fortaleça a interculturalidade. Essa rede de educação vai contar com universidades e instituições de pesquisa, mas sempre de forma dinâmica: pautadas em propostas aderentes às necessidades levantadas pelos territórios”.
Segundo o secretário, o cronograma a respeito do Programa é consolidar a agenda até outubro de 2025, através de oficinas e pactuações, e a partir de 2026 implementar a agenda como “bússola da educação permanente na saúde indígena em nível nacional".
O conjunto de atividades em andamento, sinalizadas na minuta de atualização da PNASPI e nas falas do secretário de Saúde Indígena, corroboram a avaliação de Pontes de que a mesma ainda não é eminentemente um documento, mas sim um “processo” em andamento. “O conteúdo que está circulando no momento deverá sofrer mudanças, o próprio GT da Abrasco foi convidado a opinar. É um processo necessário, a primeira PNASPI foi feita há 20 anos, em outro contexto”.
A pesquisadora cita a realização da 6ª Conferência Nacional de Saúde Indígena (6ª CNSI), em novembro de 2022, como marco desta caminhada que busca atualizar desafios ao Subsistema de Atenção à Saúde Indígena, como o perfil demográfico destas populações e a valorização das medicinas indígenas e dos sistemas médicos indígenas. “Estamos diante de um processo que é necessário e que foi adiado por muito tempo, para enfrentar os ‘nós’ históricos da saúde indígena, para que o documento da Política não seja apenas de desejos, mas uma pactuação entre gestores. Não é a PNASPI ou a Sesai/MS, sozinhas, que darão conta dos desafios. Nesse processo, é necessário pactuar as questões objetivas e as atribuições de outras secretarias do Ministério da Saúde, além das secretarias de Saúde municipais e estaduais, um desafio decorrente da urbanização da população indígena”.
Os dados do Censo 2022 revelaram, por exemplo, que cerca de 53,9% (914,7 mil pessoas) da população indígena residiam em áreas urbanas e que 4.833 dos 5.570 municípios do país têm população indígena. O direito à saúde indígena, a rigor, deveria ser garantido nessa amplitude territorial. “Felizmente a Sesai está mostrando uma abertura para o diálogo, algo bastante necessário para construir os consensos necessários não apenas com demais gestores, mas também com os trabalhadores da saúde, o controle social, as instâncias interfederativas”, comenta Pontes.
Orçamento e logística
Não à toa, a minuta de atualização da PNASPI defende que a logística e o transporte "devem estar articulados à realidade geográfica e sociocultural de cada território indígena, assegurando o deslocamento de pessoas, insumos e equipes de forma segura, oportuna e culturalmente sensível".
De acordo com o secretário Tapeba, "estamos falando de desafios únicos: deslocamentos que muitas vezes são fluviais, ou só possíveis por avião em certas épocas do ano”. Ele cita como conquista, dentro desse esforço, a implantação do primeiro SAMU Indígena em Dourados (MS), que permite atendimento móvel de urgência 24 horas, bilíngue, adaptado à realidade indígena. “A ideia agora é fazer um estudo técnico para avaliar a viabilidade de expandir o SAMU Indígena para outras regiões estratégicas, sempre respeitando as especificidades culturais e logísticas de cada povo”, comenta.
Por fim, a minuta propõe "que o orçamento para a execução da Política Nacional de Saúde Indígena seja aprovado na LOA como despesa 'obrigatória', e não mais 'discricionária'."
Para o titular da Sesai, garantir esta mudança é fundamental. “Hoje o orçamento da saúde indígena está classificado como despesa discricionária, ou seja, não obrigatória. Isso significa que, em tempos de corte, o SasiSUS fica vulnerável, e isso ameaça a sustentabilidade do sistema. Por isso defendemos que o orçamento seja tratado como despesa obrigatória. Para isso, vamos trabalhar junto ao Ministério do Planejamento e ao Congresso Nacional na fase de elaboração do próximo Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias. Sabemos que o PLDO de 2026 já está fechado, mas nossa meta é atuar desde o início do próximo ciclo para incluir essa mudança. É um passo político e jurídico essencial para dar segurança às ações de saúde indígena”, concluiu.
Jornalista: Paulo Schueler. Imagem: Ministério da Saúde.