'Chama atenção a necessidade urgente de combater os mecanismos de precarização no SUS'

Entre 10 e 13 de dezembro, ocorreu a 4ª Conferência Nacional de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde (CNGTES), que reuniu cerca de 3 mil delegados, observadores e convidados em Brasília. Pesquisadora do Observatório dos Técnicos em Saúde, Ialê Falleiros Braga esteve presente na 4ª CNGTES e avalia o evento.

 

Como foi a participação das(os) trabalhadoras(es) técnicas(os) no evento? Estavam em contingente representativo?

As delegações, em sua maioria, estavam identificadas como representantes dos estados, carregavam as respectivas bandeiras e usavam camisetas iguais. Havia muitos grupos reunidos em torno de bandeiras de movimentos populares também. Mas não havia distinção visível entre usuários, trabalhadores e gestores, muito menos entre trabalhadores de nível superior e de nível médio. A identidade das e dos trabalhadores sob o guarda-chuva de “técnicos” ainda não está consolidada na saúde. Quando isso se der, será de uma força imensa, já que compõem a maioria da força de trabalho na área.

 

As deliberações da Conferência incluíram as demandas das(os) técnicas(os)?

Sim, estavam incluídas em algumas diretrizes e propostas de valorização das Agentes Comunitárias de Saúde e dos Agentes de Combate às Endemias - ACS e ACE, bem como de fortalecimento das doulas no SUS, e de modo mais amplo nas diretrizes e propostas elaboradas na Conferência Livre realizada pela EPSJV (Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio). Essas últimas imprimiram no Relatório Nacional Consolidado a presença das e dos técnicos em saúde em sua concepção ampliada.

 

Como foi a percepção das(os) participantes sobre nossa concepção ampliada de técnicos?

No Grupo de Trabalho que acompanhei, essa concepção precisou ser explicitada pela delegada da Conferência Livre da EPSJV, na defesa contrária a um destaque solicitando a supressão total da diretriz que fala sobre ela. A nossa delegada foi aplaudida ao explicar que “trabalhador técnico em sentido ampliado” se trata do amplo conjunto de trabalhadores composto principalmente por mulheres, negras, com formação no ensino fundamental, médio, formação técnica ou saberes adquiridos no e pelo trabalho ou, ainda, com formação em Curso Superior Tecnológico. Aí a diretriz foi mantida por maioria quase absoluta.

 

Das categorias em luta por profissionalização apontadas pelo OTS, quais tiveram voz durante o evento?

Além das ACS e dos ACE, categorias que, embora bastante desvalorizadas e precarizadas, são amplamente reconhecidas pelo importantíssimo trabalho que realizam nos territórios de todo o país, as presenças das doulas e da categoria de cuidadores de idosos, marcaram presença na 4a CNGTES. Ambas categorias têm relação estreita com a EPSJV, por meio da construção conjunta de cursos de qualificação e do apoio às lutas de suas entidades sindicais e associativas. Curiosamente, são trabalhadoras ligadas ao cuidado no início e no final do ciclo da vida, pelas quais todos nós passamos e/ou passaremos, e que estão em luta pela profissionalização, demandando formação profissional, certificação pública, reconhecimento e incorporação ao SUS.

 

Outros observatórios da rede ObservaRH estavam presentes? Identifica pontos de pauta em comum com os mesmos?

Certamente muitos estavam presentes, porém infelizmente não houve articulação institucional ou espaço de encontro e debate previsto na Conferência.

 

Quais foram os principais pontos, em trabalho e educação, durante o evento?

Dentre os pontos debatidos na 4a CNGTES em relação ao trabalho, chama atenção a necessidade urgente de combater os mecanismos de precarização no SUS, por meio de concurso público e da efetivação do plano de cargos, carreiras e salários. Ainda, destaca-se a importância da garantia das ações afirmativas para inclusão de pessoas trabalhadoras considerando as diversidades e as interseccionalidades, a implementação de um plano nacional de carreira digno e de uma política de saúde para essas e esses trabalhadores. Em relação à educação, o fortalecimento da integração ensino-serviço-comunidade e da educação permanente das e dos trabalhadores do SUS foram os principais pontos do debate, além da educação popular em saúde e da educação interprofissional. A educação em agroecologia e a educação com práticas integrativas complementares também apareceram como diretrizes, e a educação profissional em saúde por meio da articulação entre instituições públicas foi um ponto-chave para demarcar a luta contra o mercado privado formador de trabalhadores de nível médio na saúde.

 

Qual sua avaliação geral sobre a Conferência?

Foi reforçada a percepção de que, após 20 anos de criação da Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde no Ministério da Saúde (SGTES/MS), um novo modelo de gestão do trabalho no SUS e da educação de suas e seus trabalhadores conseguiu difundir a noção de que a trabalhadora e o trabalhador da saúde é sujeito e agente de transformação no processo de trabalho - e não mero recurso humano, cumpridora ou cumpridor de tarefas pré-definidas, como se dá na lógica administrativa tradicional. Mas, ao mesmo tempo, a expectativa de que essa trabalhadora e esse trabalhador sejam participativos, autônomos e criativos não se cumprirá plenamente enquanto avançar a precarização do trabalho na saúde, sobretudo por meio da terceirização dos contratos de trabalho no SUS. Essa contradição desafia o controle social e enfraquece a participação social desse segmento que deve sustentar 25% da representação na composição dos conselhos e demais instâncias participativas no nosso sistema de saúde.

 

Que pontos de melhoria você indica, para que a pauta das(os) - e sobre - as(os) técnicos tenha mais relevância em conferências futuras?

A elevação do grau de autoconsciência e organização coletiva das pessoas trabalhadoras técnicas em sentido ampliado trará novas possibilidades de conquista para essas trabalhadoras tanto no que se refere à regulação de suas profissões quanto em relação aos seus direitos trabalhistas. O investimento público na oferta pública de sua formação e qualificação profissional é fundamental para a construção de uma base de conhecimentos técnicos e ético-políticos comum a essas e esses trabalhadores, para que se fortaleçam e se façam visíveis enquanto categoria abrangente, majoritária e unificada que “faz o SUS acontecer”.

 

Jornalista: Paulo Schueler. Imagem: Erika Farias/EPSJV